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Saúde Mental e Mudanças Climáticas

Era 1955 quando o poeta recifense, João Cabral de Melo Neto, publicava sobre as migrações impostas pela Injustiça Climática, mesmo que ainda não tivesse esse nome. Em “Morte e Vida Severina”, guiado pelo rio Capibaribe, o protagonista é atravessado pela presença constante da morte que, diante da narrativa, lhe parece uma alternativa ao sofrimento. Em seu cerne, trata-se de um enredo sobre Saúde e Clima, mesmo que, mais uma vez, não tivesse esse nome.  

Na história que percorre séculos, Severino é marcado por uma existência social e física, pois ocupa espaços que o carregam de significados. Da mesma forma, funcionamos nós, seres humanos não fictícios. No texto a seguir, que começa de forma retrospectiva, na década de 50, precisamos falar de problemas que continuam atuais, mas que ainda não ocupam o centro das discussões sobre a garantia de direitos: os impactos das mudanças climáticas na saúde mental. 

De acordo com a OMS, Saúde Mental é um estado de bem-estar que permite que as pessoas desenvolvam habilidades, lidem com momentos desafiadores da vida, trabalhem de forma produtiva, e contribuam para a sua comunidade. Mas, o conceito tem um significado plural e precisa considerar dimensões sociais, econômicas e políticas, por exemplo, como fatores que sustentam esse estado. Portanto, a Saúde Mental pensa um ser humano contextualizado, com uma existência mental que nasce da sua interação com o mundo. 

Dessa forma, nosso texto pretende entender a crise climática enquanto cenário que gera sofrimento, uma vez que tem impacto direto no acesso a recursos fundamentais à vida. É importante pontuar que, apesar de passar por períodos de resfriamento e aquecimento, o planeta enfrenta um processo diferente, acelerado pelas emissões dos gases de efeito estufa. Nos últimos 200 anos, a temperatura média global sofreu um aumento de aproximadamente 1,1º C, o que no passado, levaria de milhares a milhões de anos para acontecer. 

Na saúde, de forma geral, as mudanças do clima vão afetar a forma com a qual as pessoas vivem e morrem, porque as manifestações do aumento da temperatura global, como as chuvas ou secas intensas, tem impactos na segurança alimentar e hídrica, na propagação de doenças, na poluição do ar, entre outros. 

Na saúde mental, as consequências são muitas. Estudos sobre o comportamento em modelos animais, utilizam o aumento da temperatura ambiente como forma de gerar estresse em ratos de laboratório. Já em 2017, pesquisas apontaram a relação entre as ondas de calor e comportamentos de automutilação, ou hospitalizações por questões psiquiátricas, em humanos. Dentre aqueles que são afetados pelas temperaturas crescentes, as mulheres têm maior probabilidade de desenvolver dificuldades em saúde mental, em função de vulnerabilidades que aumentam sua susceptibilidade a condições relacionadas às mudanças climáticas.

Também, as destruições causadas pela emergência do clima, como os danos à estrutura pública e privada, ao armazenamento de recursos, ou as quedas de energia, levam a lesões físicas, ao trauma e ao isolamento, além de ameaçarem direitos à moradia digna e ao transporte público. 

Nesses casos, as pessoas passam pelo luto relacionado ao desligamento de algo ou alguém que  era significativo. Nas inundações, as pessoas estão sujeitas às perdas, mas também, ao medo de novos e mais intensos lutos, afinal, a crise climática tende a aumentar a incidência de eventos extremos. Diante dessas ameaças, se vê uma crescente no número de pessoas que vivem em estado de ansiedade, que respondem a um mundo em que as ações ainda são insuficientes para limitar o aquecimento a temperaturas recomendadas.

Em 2003, o termo solastalgia veio para acolher os sentimentos das vítimas dos cenários de degradação ambiental. Ele fala sobre os transtornos psicológicos que resultam de mudanças destruidoras do território, em função, dentre outras coisas, da mudança climática. Trata-se de um sentimento de violação do “seu lugar no mundo”, e, consequentemente, da sua identidade. 

Recuperando a ideia de Justiça Climática que marca a história dos “Severinos” em todo o mundo, é importante pontuar que as consequências da emergência climática são influenciadas pela interação entre a forma em que a sociedade se organiza e os eventos ambientais. Portanto, sofrem impactos mais intensos, populações que já são marcadas por sofrimentos sociais, sofrimentos que tem origem nas situações de injustiça, e que se escondem em contextos de negligência com a população.

Por isso, em 2023, João Cabral de Melo Neto se faz contemporâneo e, ao contar a história de um retirante, conta também a história das milhares de vítimas das chuvas de 2022. Fala das pessoas forçadas a saírem de suas casas, em Pernambuco; das enchentes no Sul da Bahia e das recentes inundações na Região Norte do país. 

 

Referências:

 

BERRY, H. L. et al. The case for systems thinking about climate change and mental health. Nature Climate Change, v. 8, n. 4, p. 282–290, abr.  2018. 

 

Da solastalgia à alegremia | Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais. Disponível em: <https://www.wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim/da-solastalgia-a-alegremia>. 

 

Precisamos falar sobre a saúde mental das mulheres e as mudanças climáticas. Disponível em: <https://www.empoderaclima.org/pt/base-de-dados/artigos/precisamos-falar-sobre-a-saude-mental-das-mulheres-e-as-mudancas-climaticas>. 

 

STEFFENS, S. R. DESASTRES NATURAIS: ASPECTOS PSICOLÓGICOS E TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO ORIUNDOS DE UMA INUNDAÇÃO. Anuário Pesquisa e Extensão Unoesc São Miguel do Oeste, v. 3, p. e19667–e19667, 30 out. 2018. 

 

WERLANG, R.; MENDES, J. M. R. Sofrimento social. Serviço Social & Sociedade, p. 743–768, dez. 2013. 

 

Nome do Autor: Amanda Suarez

Mini Biografia: Estudante de Psicologia e ativista climática, engajada em projetos sobre saúde, clima e juventudes.

Presente de Yemoja Sustentável: um caminho para sustentabilidade.

As religiões que possuem como origem os Povos tradicionais de Matrizes Africanas (POTMA) tem como elemento primordial a preservação e conservação dos espaços naturais sagrados. No Brasil, os saberes e fazeres ancestrais, ou seja, a cosmovisão desses povos fora preservada nas Unidades Territoriais Tradicionais (UTT) também conhecidas como Terreiros, Abassás, Kwes, Ilê asé entre outros.  A diversidade de tradições dos potmas torna ainda mais desafiadora e complexa essa relação territorial. De modo geral as religiões afro-brasileiras possuem a crença que exista uma energia vital única em cada ser vivo ou elemento constituinte da natureza. Esse conceito tradicional é chamado de Axé (Asé). O Axé pode ser compreendido como a partícula divina, sendo esse o princípio que une e transpassa a todas as religiões afro-brasileiras.    

Os espaços naturais sagrados são considerados altares naturais, locais que funcionam como fonte originária do Axé. Cada ambiente possui uma determinada função e propriedade específica de manutenção e renovação do Axé contido em cada ser vivo.  Os  principais espaços naturais utilizados pelos potmas são os Mares, Mangues, rios, encruzilhadas, montanhas, feiras livres, mercados, bosques, estradas etc..  A não utilização desses espaços, assim como elementos que não pertencem ao mesmo ou interferem na dinâmica natural do ambiente como sujeiras, poluição, desmatamento, lixo, queimadas, interferem diretamente na manutenção das tradições religiosas dos potmas. 

O mar/praias são os espaços naturais mais utilizados por esses povos tradicionais, por se tratar de um local de resgate, purificação e interseção entre o território atual (Brasil)  e o continente africano.  No Brasil a maior festa popular que possui como origem as tradições africanas são os festejos dos Presentes à Yemoja. A divindade Yemoja é considerada a Rainha do Mar apesar de ter o domínio sobre as águas dos rios em sua cidade natal. 

 Tradicionalmente os presentes são feitos e organizados pelos potmas, em alguns locais possuem forte participação dos pescadores, marisqueiras e outros povos tradicionais. Em sua maioria essas devoções são motivadas pelos agradecimentos de uma boa pesca (pelos pescadores) e por inúmeras graças obtidas pela misericórdia da divindade Yemoja.  A poluição dos mares impacta diretamente aos festejos a rainha do mar, assim como todos os povos tradicionais que dele sobrevivem. 

Compreendendo a necessidade do resgate tradicional das festas dos Presentes de Yemoja e entendendo que esse evento pode contribuir para uma mudança geral no paradigma ambiental para toda a sociedade, nasce o Presente de Yemoja Sustentável.  Esse presente tem como objetivo conscientizar os potmas assim como todos os participantes do evento que podemos fazer a manutenção da nossa fé (Axé) sem poluir os espaços naturais sagrados.  Esse presente é feito apenas como produtos naturais, substituindo os objetos, recipientes e outros elementos industrializados por peças artesanais produzidos pelas Utts que possuem como matéria prima apenas materiais orgânicos. 

 O primeiro Presente de Yemoja Sustentável ocorreu no ano de 2020, na praia do Recôncavo em Sepetiba, Rio de Janeiro-RJ.  Esse presente ocorreu graças a comissão organizadora do Presente á Yemanja em Sepetiba que é realizado no segundo domingo de fevereiro desde  o ano de 1994.  O evento já orientava seus participantes a não utilizarem garrafas de vidro como medida para minimizar os impactos ambientais proporcionado pelas oferendas ofertadas durante o evento.  No ano seguinte, entendendo a importância social, ambiental e educacional que o evento pode ter, a comissão organizadora cria uma coordenação específica voltada para assuntos ambientais, convidando o idealizador do Presente de Yemoja Sustentável a integrar oficialmente ao evento. A partir do ano de 2021 apenas oferendas sustentáveis foram direcionadas ao mar.  

O Balaio Cerimonial Sustentável ofertado a divindade Yemoja é composta por uma boneca feita de palha de milho (coletada nos mercados e feiras da região). Esse material natural também é facilmente encontrado nos terreiros, pois compõe um dos pratos tradicionais dedicados a divindade da prosperidade, o Orixá Oxóssi. Esse orixá é um dos filhos de Yemoja, logo sempre presente ao redor de sua mãe. 

Outro objeto importante que compõe essa oferenda é o abebé (Espelho de mão) que em sua maioria é produzido de plástico, metais, vidros ou papelão revestido de tecidos industrializados. Esses materiais poluentes, que contribuem para poluição dos mares, principalmente pela problemática dos microplásticos, são substituídos por taliscas de mariwo (nervura das folhas de dendezeiro) e trabalhados artesanalmente com palhas da costa. O abebé sustentável não utiliza o espelho em sua composição, por entender que esse objeto simbólico pode cortar e poluir ainda mais a casa dos irmãos marinhos. 

Os vidros de perfumes industrializados presentes nas oferendas, são substituídos por Omi eró ( Águas de ervas aromáticas ) que tradicionalmente são utilizadas as divindades iyagbás ( mulheres). A erva Colônia, makasá e principalmente o manjericão branco são as principais ervas utilizadas. Esses vegetais trazem consigo o Axé da calma, equilíbrio, e boas vibrações para as pessoas que as utilizam.  O cesto de vime que é utilizado para armazenar todos os elementos da oferenda, representando o “corpo” é ressignificado a partir de um balaio de folha de coqueiro, outro vegetal tradicional muito utilizado pelos potmas. 

Os pentes, sabonetes e garrafas de champagne que são ofertados para a rainha do mar são substituídos por alimentos tradicionais como frutas e comidas. No presente sustentável, a quantidade de cada elemento utilizado é repensada, trabalhando assim as relações de consciência ambiental pelo excesso de consumo.  A recomendação é que todos os participantes se alimentem das comidas tradicionais após o processo de sacralização das oferendas, para que assim restabeleçam o axé de cada participante e fortaleçam o elo com a divindade Yemoja.  

 Os eventos dedicados a rainha do mar são excelentes oportunidades de se trabalhar uma educação ambiental decolonial sustentável assim como os preconceitos e acabar com o racismo estrutural e religioso. 

 

por Rodrigo Carneiro – Babazinho (Iwin L’orun Egbe Tayó) 

Professor de biologia (Seeduc), Pedagogo, Mestre em ensino de ciências, ambiente e sociedade (UERJ-FFP) , especialista em educação étnico -racial (UFRRJ), Sacerdote do Terreiro de Obatalá – Ile Omi Orun, fundador presidente do Instituto Terreiro Sustentável. Atuo com educação ambiental popular de terreiro, sustentabilidade e saúde.

Interpretando a Bíblia com olhares decoloniais 

 

Fala minha lindeza climática 🙂 

Antes da gente começar, deixa eu me apresentar.

Meu nome é Amanda Costa, sou comunicadora climática, internacionalista e ativista. Fundei o Instituto Perifa Sustentável, apresento o programa de Televisão #TemClimaPraIsso e hoje ocupo a posição de Jovem Conselheira do Pacto Global da ONU. Apesar de ser bastante coisa, enxergo essas atividades não apenas como trabalho, mas parte da missão que Jesus Cristo colocou em meu coração. 

 

Me envolvi com a luta ambiental decolonial e agora quero ampliar narrativas antirracistas. Até porque, já está na hora da gente combater aquele ambientalismo colonial que não traz a perspectiva de raça, gênero e classe para o debate. Ou seja, precisamos desmistificar o discurso daqueles doidos que falam que o lixo, o desmatamento e a miséria são culpa do pobre, sem pensar em toda a construção histórica que formou os lugares sociais que ocupamos hoje. 

 

Pois é, minha querida leitora. Tudo tem uma lógica por trás.

 

Apesar desse papo ser totalmente cringe, ainda existe uma galeeeera que defende o ambientalismo fundamentado numa ecologia colonial, patriarcal e racista, que preserva os interesses daqueles que há séculos ocupam um lugar de poder, privilégio e domínio no mundo.

 

Esse padrão de pensamento é bemmm antigo, também conseguimos encontrar no primeiro livro da Bíblia, na história da Arca de Noé. De acordo com Moisés, líder do povo de Israel que escreveu os primeiros cinco livro da Bíblia, Deus mandou Noé construir uma Arca para salvar a sua família junto com algumas espécies de animais, pois o Criador estava zangado com o pecado do povo e decidiu recomeçar do zero, destruindo a Terra e seus habitantes com fortes chuvas.

 

Esse torozão durou 40 dias e 40 noites, ficando conhecido como Dilúvio. 

 

Além da perspectiva religiosa, quero te convidar a analisar a história da Arca de Noé a partir de uma metáfora política. De acordo com Malcom Ferdinand, a “A arca de Noé  estabelece as balizas dos possíveis pensamentos sociais e políticos relativos às maneiras de enfrentar a crise ecológica. a Arca de Noé traz a cena do mundo no coração do ambientalismo moderno, comportando um política de embarque. Desse modo, ela simboliza um impulso inicial de ações e discursos que tem a função de construir esse embarque político e metafórico de um mundo diante da catastrófe.” 

 

A questão que fica é: quem tem o direito de entrar na Arca? Quem são os eleitos e quem são os excluídos?

Esse sistema, que elege uns em detrimento de outros, reproduz uma narrativa segregacionista, fortemente utilizada por líderes religiosos para manter o padrão de exclusão, marginalização e invisibilidade de corpos que não se encaixam no padrão de comportamento pregado e esperado.

 

Veja só essa parte do livro Uma Ecologia Decolonial, do Malcom Ferdinand:

“O que acontece na Terra, com os solos e com as florestas repercute no próprio corpo dos humanos, assim como em suas condições de vida sociais e políticas, e vice-versa. O solo das plantantions e o corpo dos escravizados confundem-se em uma única Terra-Negra subjugada pelo habitar colonial. Manter juntos antiescravagista, anticolonialismo e ambientalismo, desfazer-se da sombra do porão do antropoceno: essa é a missão de uma ecologia decolonial.” 

 

Os impactos da narrativa colonial não param por aí. Após o dilúvio, relatos bíblicos dizem que o líder Noé dormiu embriagado de vinho e Cam, um de seus filhos, expôs a nudez do pai aos irmãos com zombaria. Ao acordar, o pai amaldiçoou Canaã, filho de Cam, a ser “servo dos servos”. Como Cam e seus descendentes povoaram a África, esse episódio de Gênesis foi utilizado tanto por Negreiros europeus como pelos comerciantes árabes-muçulmanos do tráfico negreiro para justificar o injustificável: a escravidão do povo preto. 

 

Agora eu te pergunto: oque fazer para mudar esssa realidade?

Numa sociedade marcada pelo racismo, o corpo negro é constantemente relacionado a um lugar de pobreza, violência e exploração. Desse modo, o embranquecimento foi visto como solução para a redenção. Dá uma olhadinha no quadro abaixo:

 

  • Mulher negra retinta descalça, pisando na terra. Isso significa que ela está distante da civilização, próxima da natureza;
  • Filha com traços evidentes da mestiçagem, provavelmente fruto de um estupro. A filha está com os pés entre a Terra e o chão pavimentado.
  • Homem branco que carrega um sorriso de satisfação/deboche e um olhar de superioridade, passando uma sensação de que “cumpriu seu dever”. Ele tem os pés calçados, está num piso pavimentado e sentado na entrada de uma propriedade.

Esse quadro representa um contexto eugenista e traz a ideia de que o clareamento da pele siginifica algo positivo. Da mesma forma que a pele negra está relacionada com *maldição* e a natureza é enxergada como atraso, a pele branca foi relacionada com *redenção* e o *urbano* como evolução. Essa imagem reflete a maneira que o mundo colonial aprendeu a habitar a Terra: explorando a natureza, destruindo o meio ambiente e degradando os ecossistemas do planeta.

 

Por mais incômodo que seja, precisamos trazer essa conversa para a mesa. Vivemos num mundo cortado pelo racismo, pelo preconceito e pelo patriarcado. Se nós, enquanto pessoas que desenvolvem uma espiritualidade, não puxarmos esse assunto, deixamos à deriva para que narrativas estereotipadas de quem não entende o nosso universo sejam criadas. Já dizia Martin Luther King:

 

“A verdadeira paz não é somente a ausência de tensão, é a presença de justiça.”

 

Querida leitora, agora quero deixar uma coisa bem escura: esse artigo não é uma crítica contra a Bíblia, mas sim uma crítica a interpretação que alguns líderes religiosos fizeram dela. Nesse momento eu te convido a fechar os olhos, respirar fundo e orar baixinho. Converse com o Espírito Santo e peça sabedoria, diga para ELE te revelar toda a verdade escondida na história. 

 

Lembre-se: “Conhecereis a verdade e a verdade vós libertará.” (João 8:32)

 

Mini biografia: Amanda Costa é ativista climática, jovem conselheira do Pacto Global da ONU, fundadora do Instituto Perifa Sustentável e apresentadora do #TemClimaParaIsso?, um programa sobre crise climática. Formada em Relações Internacionais, Amanda foi reconhecida como #Under30 na revista Forbes, TEDx Speaker, LinkedIn Top Voices e Creator e em 2021 foi vice-curadora do Global Shapers, a comunidade de jovens do Fórum Econômico Mundial.

O saber ancestral como refúgio para pensar justiça climática

Autora: Lorena Froz

Durante a pandemia, pude trabalhar com um grupo de jovens na busca de entender quais eram as memórias ambientais de cada um, relacionadas ao território em que viviam, nesse caso a Maré. O nosso objetivo era verificar o quanto poderíamos resgatar a história e o passado de um local a partir do olhar dos seus moradores.  

No começo eu não entendia ao certo o que poderia surgir a partir desse laboratório de memórias, mas a cada dia eu notava o quanto essa busca passava pelo contato com os mais velhos desses jovens, ao mesmo tempo que ao longo dessa caminhada houve uma autodescoberta de cada um e da sua própria ancestralidade. Foi realmente um dos projetos mais ricos que eu tive a chance de colaborar.

Assim, tivemos um compilado de memórias incríveis de como a Maré, sim a minha Maré que hoje é completamente tomada por cimento, por um descaso do Estado, já foi uma praia. Que suspiro de felicidade pensar que aquele local tinha sua fauna própria, tinha mangues a perder de vista. Em algum momento, por ali corriam rios que minha tia avó se banhava e os pais e avós daqueles jovens também. É reconfortante pensar que a Maré tinha árvores frutíferas e sempre ao final da tarde as pessoas se reuniam em suas portas para compartilhar frutas e falar da vida.

Por meio de outros jovens, que por sua vez ouviram de seus mais velhos, soube sobre o quanto esse território já teve inúmeras rezadeiras, que dedicavam suas vidas a manipular ervas para salvar inúmeras pessoas. Quantas crianças já não foram salvas por essas simples mulheres mais velhas que juntando uma folha aqui e ali conseguiam confortar o coração de mães que viviam à margem de uma sociedade tão desigual que mesmo em situação de saúde comprometida era inviável a compra de um remédio. A partir dessas memórias pude imaginar as minhas.

Concomitante a isso, estive imersa na criação e curadoria de uma exposição com as minhas memórias e das minhas amigas que participaram junto comigo nesta empreitada. E mais uma vez era muito difícil imaginar o que eu poderia criar a partir dessa busca ancestral, por um simples motivo: eu não tinha ideia de onde vinha a minha família, tenho um avô que eu só sei o nome e não porque eu não gostaria de saber mais, apenas porque no dia a dia e na busca pela sobrevivência, gerações e mais gerações não tiveram tempo de olhar para si. Ainda sigo nessa busca de reconstruir a minha árvore.  

A correria do dia a dia e o imediatismo que a sociedade atual nos coloca, com cada vez menos tempo e cada vez mais frases do tipo “trabalhe enquanto eles dormem” acaba por nos sufocar de uma forma que às vezes não conseguimos nem ouvir os nossos próprios pensamentos. Parar e olhar para trás, tentar entender os nossos ancestrais e a tecnologia que praticavam, se torna um ato de coragem em meio a todo esse caos.

E assim cheguei no candomblé sem muitas referências do que seria aquele local, apenas porque a vida foi me encaminhando até que um dia estivesse ali naquele lugar com aquelas pessoas. E pude compreender algo que me fez ver o mundo de outra forma ao entender o quanto o respeito a quem veio antes é algo sagrado e mais do que isso: crucial para o funcionamento da dinâmica do barracão.

Se formos ainda mais a fundo nessa religião, entenderemos que todos os seres humanos têm seu ancestral primeiro, seu orixá, que nada mais é do que a representação de um elemento natural. O quão forte e avassalador é quando nos damos conta disso. O quão significativo é quando entendemos que estamos falando de uma religião que sem folhas não se pode se sustentar, sem os axés que só a natureza pode nos entregar, nada pode ser feito, a natureza é a nossa força vital.

Antes disso, a natureza é nossa ancestral. Parte da minha família. Parte de mim. O sangue que corre nas veias de cada animal, corre nas minhas também. Ela é um ser que vive. Entender isso ainda me causa muitas noites sem dormir, é uma virada de chave da vida. Com o meu orixá eu ainda tenho muito o que aprender também, sobre como utilizar tudo que a nossa biosfera oferece, mas com respeito e cuidado, lembrando que nas florestas existem inúmeras entidades protetoras e que conhecem sobre o funcionamento dessa teia muito melhor que qualquer um.

Entretanto, não posso aqui fechar os olhos para a injustiça climática que corrói meu povo. E é uma injustiça no campo mais amplo que essa discussão permite adentrar. E para começar a elucidar isso, vou para um passado recente. Durante a pandemia da COVID-19 o território da Maré se tornou um epicentro e por motivos que escancaram não a ausência do Estado, mas sim a escolha de políticas públicas que podem acessar esse território. Porque as operações policiais perduraram durante todo o momento em que a minha favela esteve entre os locais onde havia mais pessoas contagiadas por um vírus que pode ser mortal. Entretanto, a falta de água era algo recorrente, a falta de estrutura dos postos de saúde era evidente. Se não tivesse acontecido uma mobilização interna para salvarmos nossas próprias vidas, o cenário teria sido ainda pior. Percebemos então que a única política que pode acessar nossos corpos, de acordo com o governo, é a de morte.

Enquanto isso, a Maré segue sendo uma ilha de calor, um local onde nossas crianças saem para brincar na rua em meio a um lixão a céu aberto. Isso é injustiça climática, é isso que significa viver abaixo do nível do mar e saber que com a crise climática seu território pode simplesmente deixar de existir em algum momento. Injustiça climática é ter que mapear por qual caminho você vai tentar chegar em casa, porque choveu, sua favela está toda alagada e para piorar ainda está sem luz. E inclusive pode estar tendo uma operação policial concomitante.

Sim, à primeira vista, a crise climática pode parecer extremamente democrática, mas eu os convido a ter um olhar um pouco mais profundo. Será que realmente todos estamos reféns dessas consequências da mesma forma? Será que essas consequências não têm CEP, gênero, raça e classe?


Lorena Froz, 22 anos, cria no Complexo da Maré. Técnica em Meio Ambiente, educadora ambiental e articuladora territorial.  Graduanda de Gestão ambiental e Ativista Climática. Idealizadora da Faveleira, um projeto de comunicação e educação ambiental, que busca falar sobre as questões climáticas de uma forma que as pessoas consigam se conectar e relacionar com o seu dia a dia.

Também é integrante do JACA (Jovens em Ação pelo Clima). Participou da construção do material de comunicação da campanha “Climão: Precisamos Falar de Mudanças Climáticas nas Favelas”, da Carta de Direitos Climáticos da Maré, Carta de Saneamento Básico da Maré e da mobilização pedagógica do curso de extensão “Juventude e Mudança Climática” da UFRJ.

Candomblecista, filha do Bàbá Joaquim D’Ògún.

Ecoteologia Decolonial

Pensar a Ecoteologia Decolonial é desafio por se tratar, nela mesma, de um questionamento aos parâmetros, há séculos estabelecidos, para a Teologia como conhecemos. Passa, portanto, do ambiente da teorização para o chão da vida real de culturas e espiritualidades subalternizadas. No seu caso, se apresenta como uma postura profética, ainda mais ao constituir um binômio com o Decolonial. Isso torna esse texto ainda mais desafiador, tentando ler um caminho que, ao mesmo tempo que experimenta a espiritualidade a partir da harmonia em toda a criação, apresenta uma reflexão crítica sobre esta pelo método dos estudos pós-coloniais com respeito à revelação de Deus escrita e criada. E, a partir de então, fazer uma contribuição para que a Igreja de Jesus compreenda o chamado a reconciliação, constante em todo texto bíblico, mas evidenciado em II Cor 5: 18 – 20. E para continuar dizendo que é necessário descolonizar a Teologia.

No desdobrar da minha formação, há uma construção que, alinhada com a prática da educação popular, aponta um processo dialógico com a formação teológica. Nela, ainda solitariamente, pela ausência de contribuições nas escolas superiores de teologia, iniciei a busca de como se dá a relação de Deus com sua criação, uma vez que temos por certa sua imanência como transparência no que houvera criado.

Neste sentido, para dar nome ao que buscava como sendo a compreensão da fé alinhada com o meio ambiente, inicialmente, encontrei o conceito de “Teologia da Criação”. Este, logo foi compreendido como parte do processo por se limitar ao estudo da teologia contida no ato criador de Deus. A busca por um aprendizado transversal, que me incomodava ausente na abordagem rasa que encontrava a respeito dessa imanência, me levou a acessar no texto do teólogo Afonso Murad o aprofundamento a respeito da Ecoteologia(MURAD, 2019).

Mas, o que viria a ser ela?

O texto de Murad, apesar de muito didático, elucidativo e inspirador, não trouxe uma definição naquele momento. Assim, inspirado pelas definições conhecidas de Teologia, que aponta sua razão de ser, busquei entender a construção da palavra “ecoteologia”. Então,  me atrevi a elaborar uma definição para fazer meus estudos fluírem mais tranquilos. E aqui, para que se torne mais palatável este nosso diálogo, vamos entender o binômio como dois conceitos.

Em primeiro lugar, para visualizar a Ecoteologia, podemos considerar que o termo é constituído pelo encontro de três radicais gregos, a saber, (Oikos + Theos + Logos). E assim, didaticamente, pode-se entender essa construção da Ecoteologia onde o primeiro termo (Oikos) se refere ao todo criado por Deus, o termo (Theos) que refere-se à própria divindade e o terceiro (Logos) traz além do conceito de palavra, mas a palavra que cria e diz sobre a sua própria Criação que é “muito bom” (Gn 1:31)(NASCIMENTO JUNIOR, 2022)

Desse modo, fazendo o encontro de cada significado na formação da palavra “Ecoteologia”, me aventurei em defini-la como “…o estudo sistemático da palavra da divindade sobre tudo o que ela criou.”(NASCIMENTO JUNIOR, 2022).

Mas, por ainda me encontrar num ambiente incômodo, precisava compreender como essa reflexão, a respeito da relação de Deus com sua Criação, se materializa a partir do meu território, da minha cultura e não apenas mediada por um pacote das experiências culturais de outro chão. Assim, venho ressignificando minhas práticas e conceitos da espiritualidade que levam a pensar sobre minhas raízes e cultura composta por negros que vieram sequestrados da África e indígenas dessas terras chamadas pelo colonizador de Brasil.

Em segundo lugar, para pensar a Ecoteologia, ou começar uma contribuição para a mesma, necessitamos, após a compreensão do primeiro termo deste binômio, entender o que vem a ser o segundo, a saber “Decolonial”. E, para isso, faz-se necessário assumir o território como constituído e constitutivo dos/as que foram subalternizados/as pela colonialidade imposta, inclusive, através da teologia num maniqueísmo que põe em polos opostos o sobrenatural e o natural, onde o corpo, a terra e o que seja natural ou diferente do seu padrão definido, é explorável e subalternizável. Essa definição de colonialidade, encontramos no trabalho do sociólogo peruano Anibal Quijano (QUIJANO, 2005)

Neste sentido, “Decolonial” é a contraposição à colonialidade estabelecida no meio teológico. Pensando que a teologia eurocentrada sendo colonial, estabelece uma relação com Deus apenas sobrenatural, “esquecendo” que é na dimensão do material, do corpo, do natural que acontece a encarnação do Filho de Deus, objeto de sua missão de reconciliação. Por isso é necessário estabelecer uma decolonialidade na reflexão da espiritualidade na criação sobre os escombros que a colonização deixou. Desse modo a Ecoteologia Decolonial deveria ser desnecessária, ao passo que as teologias cumprissem o papel de refletir sobre Deus, sua imanência e sua operação salvífica do mundo criado. Por isso, o lugar da Ecoteologia Decolonia é primeiramente profético e, por conseguinte, de construção de novidade de vida para o ambiente teológico (Rm 6:4). Desse modo, podemos afirmar que este fazer se estabelece na conexão com a divindade, pela harmonia entre todos os seres na criação que revela o Criador. Seres humanos e não humanos. Porém, não é possível se não contextualizar que, para a Ecoteologia ser, a partir da harmonia na criação de Deus nos territórios subalternizados, ela precisa ser Decolonial, pois entende a Criação, não como ativos ou recursos, mas como um organismo vivo no Criador e a partir de onde o próprio se manifesta, se relaciona e salva. Essas poucas palavras são parte do que podemos aprofundar sobre a Ecoteologia Decolonial, lastreada pelas epistemologias do sul, as teologias Negra e Indígena, e a manifestação de Deus atuante na criação para fora das paredes eclesiásticas e a importância fundamental da Igreja corpo.

Espero continuar essa conversa com vocês daqui por diante.

Que Deus te Bendiga.

REFERÊNCIAS E INDICAÇÕES DE LEITURA

MURAD, A. T. DE DOMINADORES A IRMÃOS: UM DIÁLOGO DA ECOTEOLOGIA COM J. RIECHMANN ACERCA DA LIBERTAÇÃO ANIMAL. Em: TAUCHEN, J. (Ed.). Cordeirio de Deus: Festschrift  em homenagem a Luiz Carlos Susin. 1. ed. [s.l.] Editora Fundação Fênix, 2019. p. 51–86.

MURAD, Afonso O NÚCLEO DA ECOTEOLOGIA E A UNIDADE DA EXPERIÊNCIA SALVÍFICA Revista Pistis & Praxis: Teologia e Pastoral, vol. 1, núm. 2, julio-diciembre, 2009, pp. 277-297 Pontifícia Universidade Católica do Paraná Curitiba, Brasil

NASCIMENTO JUNIOR, J. ECOTEOLOGIA DECOLONIAL SISTEMÁTICA: UM INÍCIO, UMA  CONTRIBUIÇÃO. Anais Eletrônicos da XXV Semana Teológica da Unicap, p. 140–148, 2022.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. n. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. 

 

Josias Vieira do Nascimento Junior é Ecoteólogo da Igreja Batista em Coqueiral (Recife) e fundador do movimento Nós na Criação.

Uma Amazônia preta, quilombola e plural

Talvez a primeira imagem que vem à mente das pessoas quando elas escutam a palavra Amazônia seja floresta. De fato, essa associação não está equivocada, o bioma Amazônico é sim o mais extenso e mais conhecido do Brasil, atravessando 9 estados brasileiros e perpassando outros 5 países da América do Sul. Mas essa extensão não se limita às dimensões territoriais, ela contribui para que existam muitas Amazônias dentro da Amazônia e que pulsam, sobretudo, diversidade. 

E foi uma dessas Amazônias plurais que eu pude conhecer ao participar, representando a Iniciativa Fé no Clima, durante o  “Amazônia Terra Preta – ATP”. O ATP é um evento realizado em Macapá pelo Instituto Mapinguari, organização que tem por objetivo desempenhar as atividades de “Proteção, Pesquisa e Educação Socioambiental”, no âmbito da Amazônia. 

Segundo Yuri Silva, um dos co-fundadores do instituto, o ATP busca promover a integração e a consolidação das lutas raciais atreladas às questões ambientais climáticas”. Durante os dois dias de atividades o que mais reverberou foi a pluralidade da Amazônia. Que é floresta, que é território de muitos povos indígenas, mas que também é urbana, quilombola, preta, congrega muitos movimentos, iniciativas e é também referência no que diz respeito à luta e resistência dos territórios e das pessoas que nela vivem.
Para Hannah Balieiro, co-fundadora e diretora executiva do Instituto Mapinguari, dentro da Amazônia a gente precisa também resgatar essa identidade, memória e construção negra da Amazônia. (…) poder trazer isso dentro de um evento onde a gente traz pesquisadores/as a nível nacional e internacional junto das nossas comunidades de base e da galera que está dentro das associações, ressacas, periferias, baixadas e quilombos, e a gente traz isso de uma maneira muito enriquecedora. Porque está todo mundo conversando, convergindo e pensando soluções. Cada um sozinho, mas quando a gente se junta (a gente vê) que tá todo mundo indo para o mesmo lugar, tentando amenizar questões que a crise climática tem agravado, que são as desigualdades..”.


Justiça Climática e o estado do Amapá 

O painel de abertura da programação, facilitado pela jornalista e especialista em Justiça Climática, Andréia Coutinho, foi justamente sobre racismo ambiental e justiça climática. Temas que são pontos de partida para qualquer debate ou planejamento acerca da emergência climática e que ilustram o panorama do Amapá em relação às demais unidades da federação brasileira. De acordo com os dados da plataforma SEEG referente ao ano de 2021, o Amapá é o estado brasileiro que menos contribui nas emissões totais de gases do Efeito Estufa, ocupando a 27° posição no ranking, ficando atrás, inclusive, do Distrito Federal. Sua capital – Macapá –  conforme os dados disponibilizados pelo IBGE, no ano de 2021, a cidade tinha como população estimada em 522.357 pessoas, que declaram-se majoritariamente como negros e negras.

 

Encontros e experiências potentes 

Uma das apostas do ATP foi trazer para o diálogo a valorização das experiências, culturas, as produções audiovisuais e as lideranças comunitárias. Lideranças como Claudete Santos, professora e ex-diretora da  Escola Quilombola José Bonifácio,  Paulo Cardoso, jovem amapaense, estudante de engenharia florestal e fundador do Coletivo Utopia Negra, entre outros. 

Cada uma dessas lideranças têm sido agentes de mudança em suas comunidades e provado que as soluções para as demandas socioambientais dos seus territórios já têm sido pensadas e realizadas nos próprias comunidades. E que as políticas públicas que precisam urgentemente chegar nesses locais necessitam considerar os saberes e mobilizações já existentes.

Fé no Clima no ATP 

Estar no ATP ,enquanto representante do Fé no Clima, trouxe oportunidade de conhecer pessoas, iniciativas e movimentos que são referências e que por razões estruturais dificilmente conseguem estabelecer conexões com outras organizações e iniciativas de outras regiões do país. 

Aproveitamos o momento para apresentar o Fé no Clima e realizar a distribuição do nosso Guia Fé no Clima – Reflexões sobre Mudanças Climáticas para Comunidades Religiosas, ações fundamentais para o fortalecimento, ampliação, diversificação e regionalização das nossas rede de lideranças religiosas e juventudes Fé no Clima. 

Além disso, um outro destaque dessa participação aconteceu durante a oficina de Agroecologia, realizada na Escola Quilombola da José Bonifácio. Onde  foi realizada a doação de exemplares de cada um dos cadernos do Guia Fé no Clima para a biblioteca da escola e para o professor Moisés, responsável pela disciplina de ensino religioso da instituição. 

 

Sharah Luciano
Pedagoga, pesquisadora, jovem ativista climática nascida no bioma Mata Atlântica e membro da equipe do Fé no Clima. 

As palavras não dão conta – Relatos das andanças II

Era manhã de sexta-feira e já estava na estrada. Indo na cabine da lotação pude admirar a caatinga que brilhava num verde vivo. Sempre me impressiono com a capacidade de resiliência deste bioma. Pode ter o acinzentado que for, basta algumas gotas d’água que tudo logo se esverdeiaia. A Caatinga fala mais de esperança do que imaginamos. Seguia em direção a Tabira, cidade no alto Pajeú, terra de poesia e cantoria.

Em Tabira revi amigas e fui em direção a casa de Dedé Monteiro, motivo de minha ida até a cidade. Dedé em Pernambuco é considerado o Papa da Poesia, tamanha sua importância para a cultura do estado. O que também lhe trouxe uma outra honraria, que talvez mais honre o estado do que a Dedé, o título de Patrimônio Vivo. Chegando em sua casa fui recebido com o que há de melhor para acolher alguém no sertão – rapadura e um copo de água bem gelado.

A conversa logo seguiu. Apresentei o trabalho que temos desenvolvido no Fé no Clima. Partilhei dos projetos que estão sendo realizados, dos encontros que tivemos e da fala inspiradora daquela viagem, a do Prof Fábio Scarano no último encontro nacional do Fé no Clima (realizado em novembro de 2022 na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro/RJ). 

No encontro o professor nos disse que a mudança de fundo a ciência não consegue tocar.  Que é no diálogo entre fé e clima, ciência e arte, ciência e religião que a gente vai conseguir alcançar o nosso objetivo ao tratar da crise climática – sensibilizar, mover as emoções e capacidades afetivas para o cuidado com a vida. Isto tocou o poeta que perguntou mais sobre o professor. Mostrei-lhe a foto tirada no evento do Rio da equipe do Fé no Clima com ele.

O centro da nossa conversa girou em torno do Rio Pajeú. O rio que corta as cidades daquela região, mas também corta a vida da gente, as nossas memórias, os nossos afetos. O rio que inspira tanta poesia. O poeta recordou as lembranças, desde a infância, que tem com o rio. Falou do Poço Escrito. Pedra misteriosa dentro do leito do rio e que desperta a curiosidade dos tabirenses. Até “recitou de có” uns versos seus:

“Quando o Poço Escrito enchia

A gente achava um colosso.

Ia bem cedo pro poço,

Passava o resto do dia.

O que eu não compreendia

Era um letreiro esquisito

Que alguém gravou no granito,

Talvez no tempo do Império,

Originando o mistério

Das pedras do Poço Escrito.”

A conversa que teve de ser encerrada pelo avançado da hora para o meu retorno terminou ao redor da mesa da cozinha – lugar de afeto e intimidade. Pedi ao Papa da poesia, recordando o outro Papa, Francisco, que a natureza e a ecologia possuíssem lugar central. Que inspirasse aos poetas e cantadores a poesia, mas também a ação, o cuidado e a conservação. Ao que ele me confirmou, como n’uma bênção.

Retornei para a casa com a alegria de ter conhecido Dedé. A paisagem que me acompanhou na ida, me animou na volta. O sol caindo sobre a caatinga lhe dava um brilho ainda maior. No coração a certeza de que se ela tanto nos deu, a ela devemos tanto nos dar. A esperança que ela nos inspira seja o combustível que nos alimenta na luta em defesa de sua preservação. 

Viva Dedé Monteiro! Viva o Rio Pajeú! Viva a Caatinga!

Paulo Sampaio, educador popular, ativista ambiental, membro da equipe Fé no Clima.

As palavras não dão conta: relatos das andanças parte I – Paulo Sampaio

Muito tenho aprendido em todos estes dias de missão rodando o país. Em meu coração pulsa forte a certeza de que do povo organizado virá nossa salvação. É da luta e da mobilização popular que a nova terra será construída. É do povo que age pela terra como a voz de Deus do “faça-se luz” que a transformação virá. São estes a fagulha da revolução e a centelha que recriará, e já o está fazendo, a nova humanidade pautada nos valores da cooperação, da preservação, do cuidado, do afeto, da interligação e da interdependência entre as espécies. 

Certa vez um monge amigo e mestre, Marcelo Barros, nos chamou atenção para um texto da tradição cristã, do primeiro testamento, sobre o Profeta Elias. O texto está no primeiro livro de Reis, no capítulo 19, e fala de um punhado de gente que Deus “fez sobrar” e que não se dobraram diante do poder que queria corromper o povo. Esse punhado de gente que Deus fez sobrar lá no tempo do Profeta Elias é hoje este nosso povo organizado nas bases. Um povo que não se dobra ao poder da morte e da ganância que assola a terra e destrói a Criação na busca de uma riqueza ilusória e efêmera. Um povo que se organiza na base e, como pequenas formigas, têm transformado, pouco a pouco, sua realidade. Insistindo e resistindo.

Tenho rodado um pouco nos centros e rincões deste país e encontrado muitos sinais de esperança. Do Maranhão ao Mato Grosso, pessoas de fé têm se voltado a pensar a sua religiosidade e espiritualidade a partir de uma perspectiva de cuidado com a Terra, mãe-irmã. Passando por São Luís (MA), Cáceres, Rondonópolis e Cuiabá (MT) tenho visto e escutado lições preciosas. As palavras não dão conta de descrever a emoção de viver tudo isso, mas consegue, ainda que mínima e infimamente, dar vida a algumas dessas lições.

A primeira já foi dita e repetida, o povo organizado produz a verdadeira transformação, revolução. Depois que é através da formação, uma formação que une teoria e prática, a partir da vida do povo, que o povo começa a ter força e se organizar. Isto porque a formação empodera, dá força, e impele, estimula, instiga, as pessoas à ação. Outro ponto importante é a dimensão festiva e afetiva da luta. A vida não é feita somente de trabalho, trabalho e trabalho. Ela precisa ser vivida plenamente e celebrada, musicada e dançada, sentida e afetada. Precisa de profecia e poesia.

Destaco, por fim, não encerrando totalmente, mas concluindo esta parte (até porque tem muito mais vivido que não cabem nas palavras), o papel das juventudes. As juventudes que tem construído e arquitetado os processos de mudança, as articulações, os trabalhos de base, as rodas de conversa. De fato, o que nos disse em janeiro de 2019 o Papa Francisco vemos pulsante no chão da vida: a juventude é “o agora de Deus”. Ouvir as juventudes, suas demandas, suas ideias, sonhos e esperanças é um bom caminho para continuarmos a missão de guardar e cultivar a Criação de Deus.

Paulo Sampaio, educador popular, ativista ambiental, membro da equipe Fé no Clima.

O melhor das COPs é a volta pra casa. Uma saudação aos encantados que me acompanham. – Hannah Balieiro

 

Entre os dias de Santa Bárbara e Nossa Senhora da Conceição, volto para minha casa entre Oyá e Oxum, que guerreiam e acolhem. Encontrando afeto nos encontros do caminho.

 

As Conferências internacionais não são um lugar para você. Se você que está me lendo for um pouco assim como eu, jovem, preta, mulher, LGBTQIAP+. Por mais que na teoria estes sejam espaços para que a sociedade civil possa ter acesso a governos e negociações, não somos corpos bem quistos. 

 

Este texto não é sobre a COP27 em si, para saber mais do que ninguém te conta sobre esses espaços, recomendo o texto de Madalena Glaênia para a Agência Jovem. Estes escritos são sobre o caminho de volta para casa e o que encontramos ao longo dele. Sou uma jovem afro religiosa, nortista, moradora da Amazônia amapaense, meu caminho de volta sempre é longo e cheio de paradas. 

 

Nesse caminho destaco dois encontros onde pude experienciar o compartilhamento e acolhimento que nem sabia que precisava. O encontro Pós COP realizado pelo Greenpeace, foi o primeiro lugar onde pude ouvir de outros companheiros que estiveram na COP27 as violências que vivenciaram em um país que vive uma crise de direitos humanos, o Egito.

 

O segundo, o Encontro Fé no Clima realizado pelo ISER. Conhecer o Fé no Clima foi um momento de calmaria diante da tempestade, pautar nossa religião nos acalenta e nos cuida, pois a religião também é esse lugar do cuidado, do corpo e da alma. É o lugar onde posso compartilhar que em umbanda tudo é encantado, e que outras pessoas irão compreender o que digo, mas interpretar esse encantamento à sua maneira, à maneira que sua fé lhe toca.

 

É o lugar onde posso compartilhar a história do Pretinho da Bacabeira, um encantado da cidade de Soure, Ilha do Marajó, no Pará. Onde um certo prefeito da cidade precisou chamar um pajé e pedir permissão ao Pretinho, para que pudesse aterrar o Igarapé em que vive e assim passar uma estrada no local. E é aí que minha fé e o clima se encontram, quando deixamos de pedir permissão e tratar com respeito o que nos é sagrado, nos sustenta e dá vida, vamos vivenciando as “vinganças da terra”, como se referiu a liderança política indígena Davi Kopenawa às mudanças climáticas.

 

Foi imposto dentro de um processo colonial, às cidades que enchem e vazam, uma dinâmica de cidades estrangeiras, em nome de um desenvolvimento que não era nosso e de um dito processo civilizatório, passamos a ver como mercadoria o que nos é sagrado. Luiza Lian canta em sua música chamada Iarinhas o que acontece com os rios da nossas cidades e como isso reflete nas nossas vidas e nos seus encantados: 

 

“Essa rua tem o nome de um rio que a cidade sufocou

A vontade do rio de voltar

Às vezes sacode de algum lugar

Ele dorme até a chuva chegar

Mas a tempestade vem anunciar

E uma enchente lembra a população

Que o que é rua antes era vazão”

 

Hoje quem paga a conta da emergência climática são os que pedem permissão para entrar no rio ou pedem licença para colher, não aqueles que desmatam, queimam e aterram. Estar nesse lugar de vivenciar a morte de encantados me parte o coração, e me coloca a trabalhar em nome da justiça pelo que é matéria e também pelo que não é. Me sinto grata e aliviada por poder encontrar no Fé no Clima um lugar de acolhimento e de poder defender o meu sagrado.

 

Alô Amazonas, Guamá e Mirí, suas Iarinhas andam cantando suas ladainhas para mim.

 

Hannah Balieiro

Ativista, artista, arteira. Cabocla da Amazônia, afro religiosa nascida no Pará e criada no Amapá. Bacharel em biologia e diretora executiva do Instituto Mapinguari, sendo ponto focal na ReLLAC-j, educadora popular ativando o debate climático em comunidades tradicionais e cidades da Amazônia

 

O que é a COP e por que o ISER está na conferência

Realizada desde 1995, a COP (Conferência das Partes) é o encontro da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) para dirigente políticos, mas que também reúne anualmente representantes de diversos países, cientistas e organizações da sociedade civil para debater a pauta climática. Durante a COP são discutidas práticas possíveis de serem aplicadas para a mitigação, adaptação e financiamento de projetos para países mais vulneráveis à crise climática. 

 

Um dos principais objetivos da conferência é ter como resultado a redução da emissão de gases efeito estufa (GEE), como foi tratado no Acordo de Paris, que entrou em vigor em 2016. Na ocasião, os 55 países que representavam no mínimo 55 % das emissões mundiais de GEE, se comprometeram com a redução. 

 

Ao longo dos anos, as plenárias compostas por chefes de estado vêm dividindo o protagonismo com representantes de diversos setores da sociedade civil. São ativistas, membros de ONGs, lideranças religiosas, pesquisadores, executivos e empresários conscientes da importância de integrar as discussões sobre o futuro do planeta e da humanidade. 

 

De 2019 para cá, o ISER tem acompanhado de perto as ações e os debates da COP por meio de nossa iniciativa Fé no Clima, criada em 2015. O projeto surgiu no contexto de dois importantes eventos daquele ano: a promulgação da encíclica “Laudato Sí”, do Papa Francisco, e a Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas para as mudanças climáticas – a COP 21, ocorrida em Paris. 

 

Assim como nas edições anteriores, nós estamos na COP 27 porque temos como missão reunir e engajar lideranças religiosas para a conscientização de suas comunidades de fé no enfrentamento da crise climática. Fazemos isso por meio do diálogo entre cientistas, religiosos, ambientalistas e representantes de povos originários, com objetivos de adaptação, resiliência e justiça climática.

 

Desde então, atuamos em diálogo com lideranças de comunidades de fé, participação em redes e espaços da agenda climática, produção e difusão de informações sobre temas ambientais e climáticos, entre outras ações

 

A sociedade civil tem construído movimentos importantes para a conscientização sobre a crise climática e na busca por direitos e políticas a partir de mobilizações e campanhas por todo o mundo. Continuaremos mobilizando e cobrando por meio da Fé para que políticas deem suporte à população mais impactada por essa crise, e a justiça climática seja uma prioridade para todos.