O saber ancestral como refúgio para pensar justiça climática

Autora: Lorena Froz

Durante a pandemia, pude trabalhar com um grupo de jovens na busca de entender quais eram as memórias ambientais de cada um, relacionadas ao território em que viviam, nesse caso a Maré. O nosso objetivo era verificar o quanto poderíamos resgatar a história e o passado de um local a partir do olhar dos seus moradores.  

No começo eu não entendia ao certo o que poderia surgir a partir desse laboratório de memórias, mas a cada dia eu notava o quanto essa busca passava pelo contato com os mais velhos desses jovens, ao mesmo tempo que ao longo dessa caminhada houve uma autodescoberta de cada um e da sua própria ancestralidade. Foi realmente um dos projetos mais ricos que eu tive a chance de colaborar.

Assim, tivemos um compilado de memórias incríveis de como a Maré, sim a minha Maré que hoje é completamente tomada por cimento, por um descaso do Estado, já foi uma praia. Que suspiro de felicidade pensar que aquele local tinha sua fauna própria, tinha mangues a perder de vista. Em algum momento, por ali corriam rios que minha tia avó se banhava e os pais e avós daqueles jovens também. É reconfortante pensar que a Maré tinha árvores frutíferas e sempre ao final da tarde as pessoas se reuniam em suas portas para compartilhar frutas e falar da vida.

Por meio de outros jovens, que por sua vez ouviram de seus mais velhos, soube sobre o quanto esse território já teve inúmeras rezadeiras, que dedicavam suas vidas a manipular ervas para salvar inúmeras pessoas. Quantas crianças já não foram salvas por essas simples mulheres mais velhas que juntando uma folha aqui e ali conseguiam confortar o coração de mães que viviam à margem de uma sociedade tão desigual que mesmo em situação de saúde comprometida era inviável a compra de um remédio. A partir dessas memórias pude imaginar as minhas.

Concomitante a isso, estive imersa na criação e curadoria de uma exposição com as minhas memórias e das minhas amigas que participaram junto comigo nesta empreitada. E mais uma vez era muito difícil imaginar o que eu poderia criar a partir dessa busca ancestral, por um simples motivo: eu não tinha ideia de onde vinha a minha família, tenho um avô que eu só sei o nome e não porque eu não gostaria de saber mais, apenas porque no dia a dia e na busca pela sobrevivência, gerações e mais gerações não tiveram tempo de olhar para si. Ainda sigo nessa busca de reconstruir a minha árvore.  

A correria do dia a dia e o imediatismo que a sociedade atual nos coloca, com cada vez menos tempo e cada vez mais frases do tipo “trabalhe enquanto eles dormem” acaba por nos sufocar de uma forma que às vezes não conseguimos nem ouvir os nossos próprios pensamentos. Parar e olhar para trás, tentar entender os nossos ancestrais e a tecnologia que praticavam, se torna um ato de coragem em meio a todo esse caos.

E assim cheguei no candomblé sem muitas referências do que seria aquele local, apenas porque a vida foi me encaminhando até que um dia estivesse ali naquele lugar com aquelas pessoas. E pude compreender algo que me fez ver o mundo de outra forma ao entender o quanto o respeito a quem veio antes é algo sagrado e mais do que isso: crucial para o funcionamento da dinâmica do barracão.

Se formos ainda mais a fundo nessa religião, entenderemos que todos os seres humanos têm seu ancestral primeiro, seu orixá, que nada mais é do que a representação de um elemento natural. O quão forte e avassalador é quando nos damos conta disso. O quão significativo é quando entendemos que estamos falando de uma religião que sem folhas não se pode se sustentar, sem os axés que só a natureza pode nos entregar, nada pode ser feito, a natureza é a nossa força vital.

Antes disso, a natureza é nossa ancestral. Parte da minha família. Parte de mim. O sangue que corre nas veias de cada animal, corre nas minhas também. Ela é um ser que vive. Entender isso ainda me causa muitas noites sem dormir, é uma virada de chave da vida. Com o meu orixá eu ainda tenho muito o que aprender também, sobre como utilizar tudo que a nossa biosfera oferece, mas com respeito e cuidado, lembrando que nas florestas existem inúmeras entidades protetoras e que conhecem sobre o funcionamento dessa teia muito melhor que qualquer um.

Entretanto, não posso aqui fechar os olhos para a injustiça climática que corrói meu povo. E é uma injustiça no campo mais amplo que essa discussão permite adentrar. E para começar a elucidar isso, vou para um passado recente. Durante a pandemia da COVID-19 o território da Maré se tornou um epicentro e por motivos que escancaram não a ausência do Estado, mas sim a escolha de políticas públicas que podem acessar esse território. Porque as operações policiais perduraram durante todo o momento em que a minha favela esteve entre os locais onde havia mais pessoas contagiadas por um vírus que pode ser mortal. Entretanto, a falta de água era algo recorrente, a falta de estrutura dos postos de saúde era evidente. Se não tivesse acontecido uma mobilização interna para salvarmos nossas próprias vidas, o cenário teria sido ainda pior. Percebemos então que a única política que pode acessar nossos corpos, de acordo com o governo, é a de morte.

Enquanto isso, a Maré segue sendo uma ilha de calor, um local onde nossas crianças saem para brincar na rua em meio a um lixão a céu aberto. Isso é injustiça climática, é isso que significa viver abaixo do nível do mar e saber que com a crise climática seu território pode simplesmente deixar de existir em algum momento. Injustiça climática é ter que mapear por qual caminho você vai tentar chegar em casa, porque choveu, sua favela está toda alagada e para piorar ainda está sem luz. E inclusive pode estar tendo uma operação policial concomitante.

Sim, à primeira vista, a crise climática pode parecer extremamente democrática, mas eu os convido a ter um olhar um pouco mais profundo. Será que realmente todos estamos reféns dessas consequências da mesma forma? Será que essas consequências não têm CEP, gênero, raça e classe?


Lorena Froz, 22 anos, cria no Complexo da Maré. Técnica em Meio Ambiente, educadora ambiental e articuladora territorial.  Graduanda de Gestão ambiental e Ativista Climática. Idealizadora da Faveleira, um projeto de comunicação e educação ambiental, que busca falar sobre as questões climáticas de uma forma que as pessoas consigam se conectar e relacionar com o seu dia a dia.

Também é integrante do JACA (Jovens em Ação pelo Clima). Participou da construção do material de comunicação da campanha “Climão: Precisamos Falar de Mudanças Climáticas nas Favelas”, da Carta de Direitos Climáticos da Maré, Carta de Saneamento Básico da Maré e da mobilização pedagógica do curso de extensão “Juventude e Mudança Climática” da UFRJ.

Candomblecista, filha do Bàbá Joaquim D’Ògún.