“Em 15 de fevereiro de 1750, o Espérance naufraga ao largo de Le Vauclin, na Martinica. Desembarcados naquela areia desconhecida, 177 náufragos do Espérance já procuram, através das fendas dos morros ainda verdejantes, as possíveis aberturas de um mundo. (FERDIAND, 2023, p.153).”
É com essa citação que Malcom Ferdiand começa um dos capítulos do seu livro Uma Ecologia Decolonial (2023). Ele encontra na experiência dos corpos negros racializados à partir dá modernidade, um conceito para descrever a colonização europeia e os processos subsequentes dessa estrutura social. “A colonização europeia e as escravidões formam também um imaginário a partir do qual se pode falar de um mundo, de seus habitantes, de suas terras e de seus mares” (FERDINAD, 2023, p.154).
Ferdinad, utiliza o conceito de “Navio Negreiro” para descrever essa relação de subjugação da estrutura colonizadora em relação ao corpo escravizado que é retirado do seu lar, da sua terra, da sua cultura, dos seus laços familiares e da sua experencia religiosa para ser transformado em mera mercadoria, a ser utilizada como mão de obra do império.
Como fundamento, o navio negreiro contém os princípios que estruturam o mundo crioulo. Assim como o cofre de madeira no qual os hebreus conservavam as Tábuas da Lei, o navio negreiro encerra em seu seio, em seu convés inferior e em seu porão, os preceitos políticos, sociais e morais que estruturam as relações com a natureza, com a Terra e com o mundo. O principal traço desse fundamento reside numa política do desembarque. O desembarque faz, inicialmente, referência aos quatro séculos ao longo dos quais navios europeus desembarcaram, nas margens caribenhas e americanas, milhões de africanos aprisionados transformados em Negros e escravizados coloniais. (FERDIAND, 2023, p.155-156).
Durante mais de 4 séculos, navios europeus traficaram pessoas trazidas a força da África, legitimados pela força do cristianismo europeu com as suas missões de evangelização e catequização de outros povos. A noção de que outros povos, culturas e religiões eram inferiores aos cristãos europeus, sustentou uma noção de que os povos ameríndios e africanos precisavam serem salvos, para que suas almas não fossem condenas ao inferno. Entretanto como o próprio Ferdiand descreve: o verdadeiro inferno era ser acorrentado nos porões do navio negreiro, após ser brutalmente separado de tudo aquilo que dava razão a sua existência: religião, família e cultura. Para esse escravizado, não havia mais nenhuma esperança, a não ser a morte após um naufrago no meio do oceano atlântico. Entretanto, Ferdiand propõe que em alguns casos, a experencia do naufrago não foi a de morte e sim a possibilidade de fuga dessa estrutura colonialista, como o caso do navio Espérance.
É possível fazer uma relação dessa noção de náufrago como possibilidade de escape, com a história do Apostolo Paulo no livro de Atos no capitulo 27. Nesse relato um dos grandes propagadores do cristianismo primitivo está sendo levado como prisioneiro até o Imperador César. Após inúmeras advertências, orientações e apelos do apostolo, sobre os perigos dessa viagem e as decisões tomadas pelo senhor do navio, acontece um náufrago e milagrosamente ninguém morre. Novamente, temos mais uma história de um náufrago que não termina em morte, mas na possibilidade de salvação a partir da sobrevivência dos prisioneiros do navio. Em ambos os casos, o navio do império romano e o navio negreiro Espérance representavam as estruturas de poder que colonizavam e subjugavam outros corpos, cerceando sua liberdade, territorialidade, cultura e religião. Mas a salvação e a possibilidade de vida, estava no porão dos navios.
Quando se pensa em uma ecologia decolonial e uma tentativa de discutir as questões climáticas a partir da religião, mais especificamente a fé cristã, é preciso pegar emprestado os conceitos e símbolos apresentados por Malcom Ferdinand. A imagem do navio negreiro como símbolo da colonização nos dá margem para imaginar o cristianismo europeu, como um navio que também precisa naufragar. Não é possível pensar uma ecoteologia cristã, a partir das estruturas que sustentaram a colonização e a utilização predatória de recursos naturais, por isso a solução precisar vir de outro lugar. “Os Negros nos porões dos navios negreiros não constituem um povo preexistente à sua insurreição, sobre o qual um dos cativos poderia dizer ao capitão “deixe meu povo ir” (FERDINAD, 2023, p. 163).
A mensagem do evangelho sempre nasce nos porões, nas catacumbas, nas periferias e principalmente, no grito que sai da boca dos corpos que historicamente são acorrentados e negados no seu direito básico de existir. Os negros, as mulheres, a comunidade LGBTI+ e os indígenas são aquelas vozes que ainda ecoam de dentro dos porões e ainda tem condições de pensar um mundo novo, a partir desse desembarque em um mundo novo após o naufrago.
“Os pobres são a verdadeira Igreja, o verdadeiro povo de Deus ainda que a sua presença no sistema religioso possa ser muito fraca. Encontram-se nos grandes santuários de romarias populares. Não se encontram nas igrejas paroquiais e muitas vezes nem sequer nas capelas. Mas Jesus sabe reconhecê-los e os integra no seu corpo como o verdadeiro povo de Deus. Jesus luta pela sua libertação no meio deles”, a afirmação é do Pe. José Comblin em um artigo publicado no livro Fome de Justiça.