As religiões que possuem como origem os Povos tradicionais de Matrizes Africanas (POTMA) tem como elemento primordial a preservação e conservação dos espaços naturais sagrados. No Brasil, os saberes e fazeres ancestrais, ou seja, a cosmovisão desses povos fora preservada nas Unidades Territoriais Tradicionais (UTT) também conhecidas como Terreiros, Abassás, Kwes, Ilê asé entre outros. A diversidade de tradições dos potmas torna ainda mais desafiadora e complexa essa relação territorial. De modo geral as religiões afro-brasileiras possuem a crença que exista uma energia vital única em cada ser vivo ou elemento constituinte da natureza. Esse conceito tradicional é chamado de Axé (Asé). O Axé pode ser compreendido como a partícula divina, sendo esse o princípio que une e transpassa a todas as religiões afro-brasileiras.
Os espaços naturais sagrados são considerados altares naturais, locais que funcionam como fonte originária do Axé. Cada ambiente possui uma determinada função e propriedade específica de manutenção e renovação do Axé contido em cada ser vivo. Os principais espaços naturais utilizados pelos potmas são os Mares, Mangues, rios, encruzilhadas, montanhas, feiras livres, mercados, bosques, estradas etc.. A não utilização desses espaços, assim como elementos que não pertencem ao mesmo ou interferem na dinâmica natural do ambiente como sujeiras, poluição, desmatamento, lixo, queimadas, interferem diretamente na manutenção das tradições religiosas dos potmas.
O mar/praias são os espaços naturais mais utilizados por esses povos tradicionais, por se tratar de um local de resgate, purificação e interseção entre o território atual (Brasil) e o continente africano. No Brasil a maior festa popular que possui como origem as tradições africanas são os festejos dos Presentes à Yemoja. A divindade Yemoja é considerada a Rainha do Mar apesar de ter o domínio sobre as águas dos rios em sua cidade natal.
Tradicionalmente os presentes são feitos e organizados pelos potmas, em alguns locais possuem forte participação dos pescadores, marisqueiras e outros povos tradicionais. Em sua maioria essas devoções são motivadas pelos agradecimentos de uma boa pesca (pelos pescadores) e por inúmeras graças obtidas pela misericórdia da divindade Yemoja. A poluição dos mares impacta diretamente aos festejos a rainha do mar, assim como todos os povos tradicionais que dele sobrevivem.
Compreendendo a necessidade do resgate tradicional das festas dos Presentes de Yemoja e entendendo que esse evento pode contribuir para uma mudança geral no paradigma ambiental para toda a sociedade, nasce o Presente de Yemoja Sustentável. Esse presente tem como objetivo conscientizar os potmas assim como todos os participantes do evento que podemos fazer a manutenção da nossa fé (Axé) sem poluir os espaços naturais sagrados. Esse presente é feito apenas como produtos naturais, substituindo os objetos, recipientes e outros elementos industrializados por peças artesanais produzidos pelas Utts que possuem como matéria prima apenas materiais orgânicos.
O primeiro Presente de Yemoja Sustentável ocorreu no ano de 2020, na praia do Recôncavo em Sepetiba, Rio de Janeiro-RJ. Esse presente ocorreu graças a comissão organizadora do Presente á Yemanja em Sepetiba que é realizado no segundo domingo de fevereiro desde o ano de 1994. O evento já orientava seus participantes a não utilizarem garrafas de vidro como medida para minimizar os impactos ambientais proporcionado pelas oferendas ofertadas durante o evento. No ano seguinte, entendendo a importância social, ambiental e educacional que o evento pode ter, a comissão organizadora cria uma coordenação específica voltada para assuntos ambientais, convidando o idealizador do Presente de Yemoja Sustentável a integrar oficialmente ao evento. A partir do ano de 2021 apenas oferendas sustentáveis foram direcionadas ao mar.
O Balaio Cerimonial Sustentável ofertado a divindade Yemoja é composta por uma boneca feita de palha de milho (coletada nos mercados e feiras da região). Esse material natural também é facilmente encontrado nos terreiros, pois compõe um dos pratos tradicionais dedicados a divindade da prosperidade, o Orixá Oxóssi. Esse orixá é um dos filhos de Yemoja, logo sempre presente ao redor de sua mãe.
Outro objeto importante que compõe essa oferenda é o abebé (Espelho de mão) que em sua maioria é produzido de plástico, metais, vidros ou papelão revestido de tecidos industrializados. Esses materiais poluentes, que contribuem para poluição dos mares, principalmente pela problemática dos microplásticos, são substituídos por taliscas de mariwo (nervura das folhas de dendezeiro) e trabalhados artesanalmente com palhas da costa. O abebé sustentável não utiliza o espelho em sua composição, por entender que esse objeto simbólico pode cortar e poluir ainda mais a casa dos irmãos marinhos.
Os vidros de perfumes industrializados presentes nas oferendas, são substituídos por Omi eró ( Águas de ervas aromáticas ) que tradicionalmente são utilizadas as divindades iyagbás ( mulheres). A erva Colônia, makasá e principalmente o manjericão branco são as principais ervas utilizadas. Esses vegetais trazem consigo o Axé da calma, equilíbrio, e boas vibrações para as pessoas que as utilizam. O cesto de vime que é utilizado para armazenar todos os elementos da oferenda, representando o “corpo” é ressignificado a partir de um balaio de folha de coqueiro, outro vegetal tradicional muito utilizado pelos potmas.
Os pentes, sabonetes e garrafas de champagne que são ofertados para a rainha do mar são substituídos por alimentos tradicionais como frutas e comidas. No presente sustentável, a quantidade de cada elemento utilizado é repensada, trabalhando assim as relações de consciência ambiental pelo excesso de consumo. A recomendação é que todos os participantes se alimentem das comidas tradicionais após o processo de sacralização das oferendas, para que assim restabeleçam o axé de cada participante e fortaleçam o elo com a divindade Yemoja.
Os eventos dedicados a rainha do mar são excelentes oportunidades de se trabalhar uma educação ambiental decolonial sustentável assim como os preconceitos e acabar com o racismo estrutural e religioso.
por Rodrigo Carneiro – Babazinho (Iwin L’orun Egbe Tayó)
Professor de biologia (Seeduc), Pedagogo, Mestre em ensino de ciências, ambiente e sociedade (UERJ-FFP) , especialista em educação étnico -racial (UFRRJ), Sacerdote do Terreiro de Obatalá – Ile Omi Orun, fundador presidente do Instituto Terreiro Sustentável. Atuo com educação ambiental popular de terreiro, sustentabilidade e saúde.