O que a literatura de Clarice Lispector tem a dizer sobre ecologia?

Que mistério tem Clarice?
Caetano Veloso, Clarice


Parte da crítica literária não considerou o papel fundamental de outros viventes e da ecologia na obra de Clarice Lispector. Essa lacuna expressa um problema estrutural, pois, historicamente, existe uma cisão nas culturas ocidentais, uma espécie de dualismo que separa e inferioriza o não humano em detrimento do humano – gesto que não ocorre, por exemplo, nas culturas ameríndias e africanas. Porém, ao folhearmos os manuscritos clariceanos com atenção e uma escuta atenta, perceberemos a importância que a escritora dá à natureza, realizando uma espécie de ecoliteratura.

Uma outra questão que atravessa a literatura de Lispector é seu interesse pelo sagrado, pelo desconhecido, pela magia e misticismo. Além da sua origem judaica, Clarice tematiza e interpreta o cristianismo à sua maneira, dando títulos que se atrelam a essa religião para seus textos, como A paixão segundo G.H, Perdoando Deus e Viva crúcis. No entanto, o sagrado, na perspectiva clariceana, se encontra no cotidiano, nos fenômenos naturais: “Tenho pouco a dizer para uma plateia exigente. Mas vou dizer uma coisa: para mim, o que quer que exista, existe por algum tipo de mágica. Além disso, os fenômenos naturais são mais mágicos do que os sobrenaturais”. Essas palavras foram escritas para uma Conferência de Bruxaria na Colômbia, em 1976, intitulada “Literatura e magia”, no qual Clarice fez uma associação com uma tempestade que havia ocorrido há cerca de dois meses no Rio de Janeiro.

Existe na obra de Lispector um grande encontro entre as alteridades humanas e não humanas, que se expressa a partir da ideia de acontecimento, como uma epifania, um encontro divino e transformador, que muda toda a rota, como é o caso da experiência da personagem G.H. com a barata, que se dá num gesto de abertura para o outro, uma abertura para o mundo animal, bem como a vivência com o mundo vegetal da personagem Ana no conto “Amor”, tendo como cenário o jardim botânico do Rio de Janeiro que, inclusive, aparece em outras crônicas, tal como Um ato gratuito: “Eu ia no jardim botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver” (Lispector, 2020, p. 528). Podemos notar o prazer, o cuidado e uma certa familiarização com a natureza, assim como a experiência sagrada vivida no cotidiano, o sobrenatural se revelando naquilo que é da ordem do natural, do corriqueiro.

Em Clarice Lispector, o humano e não humano se entrelaçam ou se “intertrocam”, conforme menciona Evando Nascimento (2021). A natureza na obra clariceana não é tratada simplesmente como um pano de fundo, mas como parte integrante e fundamental da experiência sensível e existencial de suas personagens. O texto clariceano revela uma ecologia sutil, ultrapassando a abordagem ambiental tradicional, aproximando-se de uma poética da relação – para falar nos termos de Édouard Glissant (2021). Há, portanto, uma espécie de comungar com vegetais, bichos e outros seres viventes e não viventes, que convoca uma partilha e um viver junto. Comungar é também amar os outros, sendo esta uma das três coisas na qual Clarice afirma ter nascido em sua crônica “As três experiências”, publicada em 11 de maio de 1968 no Jornal do Brasil.

Lispector é um tipo de escritora que tem estima pelo pequeno, pelo imperceptível, e isso se mostra de diversas formas: nas personagens mulheres (a nordestina Macabéa; mães; professoras), na criança, nos animais, nos vegetais e tudo o que aparentemente não se enquadra no estatuto do ser. Clarice dá voz a quem não costuma ser ouvido, trazendo aqueles que costumam chegar depois. A alteridade de Clarice é radical, sendo uma escritora que afirma todo outro que se achega.

Outros textos esboçam essa alteridade radical, tal como a crônica Bichos, no qual Lispector lista e comenta sobre vários tipos de animais, além de O búfalo de Laços de Família, O ovo e a galinha, A quinta história, Onde estivestes de noite, Um sopro de vida, Água viva. Segundo Evando Nascimento (2012), todas esses manuscritos citados “ficcionalizaram certo não humano não como aquilo que ameaça o homem, mas, ao contrário, contribui para o ultrapasse das barreiras impostas pela civilização dita ocidental no avançado estágio de seu desenvolvimento tecnológico” (Nascimento, 2012, p. 25)

Portanto, não se trata de estabelecer a antiga oposição para com os outros animais e seres viventes, e ainda, não se trata de simplesmente estudar o comportamento dos bichos como em outras áreas do conhecimento, tal como a biologia ou zoologia, mas sim se trata de estar aberto às alteridades, de experimentar o ser-outro, ou, em termos deleuzianos, “o devir-outro”, nomeado por Evando Nascimento (2012) como “tornar-se outro”. Outrar-se, conforme a poesia de Fernando Pessoa. A literatura de Clarice Lispector tem muito a nos dizer, sim, sobre ecologia, sobretudo, no que se refere às relações entre fé e clima, ao incluir esses assuntos em sua obra e torná-los importantes questões a serem pensadas e discutidas – sejam no âmbito religioso ou literário –, inspirando a cultura contemporânea a seguir expandindo, acolhendo, cuidando desta Casa Comum e rompendo fronteiras.

Referências

GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

LISPECTOR, Clarice. Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

ISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020.

NASCIMENTO, Evando. Clarice Lispector: Uma literatura pensante. Rio de Janeiro:
Civilização Brasiliense, 2012.

NASCIMENTO, Evando. Clarice e as plantas: a poética e a estética das sensitivas. In:
Quanto ao futuro: Clarice. Org. Júlio Diniz. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.

 


Quésia Olanda é carioca, moradora de Nova Iguaçu, na baixada fluminense. É poeta e professora. Doutoranda em História da Filosofia (PPGF/UFRJ). Mestra em Estética e Filosofia da Arte (UERJ). Graduada em Filosofia (UFRRJ).