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Crise socioambiental e climática | Entrevista com Dom Luiz Fernando Lisboa

Esta entrevista foi pensada por Júlio César de Paula Ribeiro como trabalho final da formação Boto Fé no Clima, realizado pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER) entre agosto a outubro de 2023. O curso reuniu jovens de diferentes tradições religiosas para pensar as mudanças climáticas e a crise socioambiental a partir da sua perspectiva local e olhar de fé. Avanços, conquistas, obstáculos e resistências, fazem parte do trajeto desses jovens. Inspirado nos momentos de diálogo que tivemos durante o curso, propus entrevistar uma liderança religiosa católica, que poderá apresentar a perspectiva da Igreja para a temática e comentar sobre os desafios.  


Meu entrevistado é Dom Luiz Fernando Lisboa, Arcebispo-bispo da diocese de Cachoeiro do Itapemirim-ES. Nascido em Valença-RJ, em 1955, é o 9º filho do casal Francisco Lopes Pereira Lisboa e Benedita de Oliveira Pereira, residiu parte da infância e juventude em Osasco-SP, onde conheceu os padres missionários Passionistas. Em 1975, aos 19 anos, quando o Brasil ainda passava pela ditadura militar, Luiz Fernando ingressou no seminário da Congregação Passionista, sendo ordenado sacerdote em 1983. Mestre em Teologia Pastoral pela PUC-PR, exerceu diversas funções em sua congregação. Em 2001, foi missionário Ad Gentes em Pemba, Moçambique, no continente africano, onde ficou por 8 anos. De volta ao Brasil, foi pároco em Curitiba, até que, em junho de 2013, o Papa Francisco o nomeou bispo da diocese de Pemba, retornando para Moçambique. Após mais 8 anos na África, Dom Luiz foi nomeado pelo Papa Francisco como bispo da Diocese de Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, Brasil. Por seus serviços prestados no continente africano, Francisco concedeu a Dom Luiz o título honorífico de arcebispo. 

A entrevista foi realizada no dia 16/10/2023, em Bom Jesus do Norte-ES, na casa paroquial da paróquia São Geraldo Magela, momentos antes da missa festiva do padroeiro da cidade, São Geraldo. Na homilia da missa, Dom Luiz abordou muito do que foi falado aqui, reforçando seu compromisso com o tema. 

 

CONFIRA A ENTREVISTA: 

Quando e como o tema da crise socioambiental e climática foi apresentada ao senhor?  Qual foi sua reação?

Essa demanda da ecologia e do cuidado com a natureza, eu conheço desde a minha juventude, a partir do grupo de jovens da minha paróquia. Os jovens sempre foram sensíveis a essa temática, eu me lembro de ouvir sobre isso na pastoral da Juventude.

Embora eu fosse de uma paróquia Passionista e seja um missionário Passionista, São Francisco de Assis foi um santo que sempre empolgou a juventude, naquela época nós cantávamos muito a oração de São Francisco, de modo que esse cuidado pela criação foi algo que brotou ali. Recordo-me que nós fazíamos vários acampamentos, só na minha paróquia éramos mais de 200 jovens, foi uma época no início da pastoral da juventude que foi muito forte. Vivíamos o tempo de repressão da ditadura militar, mas os temas da justiça social e o cuidado com a casa comum andavam junto com os jovens. São Francisco de Assis ensinou para a juventude de todos os tempos esse zelo com o ser humano e também pela natureza, ao se referir como nossos irmãos o sol, a lua, os animais, e isso me sensibilizou.

E agora, eu tive a experiência de ficar quase 20 anos na África, em Moçambique. Lá, de maneira muito escandalosa e escancarada, a China está levando toda a madeira da região, isso me escandalizou, nós fizemos vários momentos de fala, de protesto. Então, quando o Papa Francisco, em 2015, lançou a Encíclica Laudato Sí, foi como um bálsamo, era a Igreja falando de forma mais contundente sobre o cuidado com o planeta, a Casa Comum. A Igreja Já tratou muito desse tema em outros documentos, mas a Laudato Sí era um documento próprio para alertar ao mundo sobre o que viria acontecer e que agora estamos vendo se realizar. 

 

Por muitos anos o senhor foi missionário na África, lá o senhor percebeu os impactos dessa crise? É um assunto que preocupa a Igreja na África?

Sim, eu fiquei quase 20 anos na África, e como disse, eu vi isso acontecer lá, por causa da depredação desenfreada da natureza. Não só retirando madeira, mas as multinacionais que entraram e continuam entrando em busca da exploração dos recursos naturais. A África é muito rica em recursos naturais de todos os tipos, eu posso citar o ouro, diamante, rubi, pedras semipreciosas, grafite, mármore, além do gás. A região que eu estava, norte de Moçambique, tem a maior reserva de gás da África. Então, essa depredação maluca, desenfreada, pecaminosa, nós, enquanto Igreja, vimos acontecer.

A Igreja na África realizou dois sínodos, duas grandes assembleias, e o documento que foi produzido denunciou isso, mas a repercussão é muito pouca, porque o que a África pensa e diz conta pouco no mundo, infelizmente. É um continente que só é lembrado para ser explorado. Na época do Covid-19, enquanto os outros quatro continentes tinham 50% da população já vacinada, na África eram apenas 2% de vacinados.

 A África é um continente esquecido, explorado, que sofre todo tipo de preconceito. Como disse, ela é rica em recursos naturais, mas passa, há muitos anos, por uma segunda colonização, através das multinacionais e daqueles mesmos países que colonizaram antes, e agora retornam para explorar os recursos. A África sofre duas vezes a colonização. Os africanos são expulsos de suas terras, é contratada mão de obra de outros países, e eles acabam não tendo nenhum dividendo dos recursos de sua própria terra. 

 

É de conhecimento geral o grande esforço da Igreja Católica e dos cristãos em defesa da vida. Apesar disso, há muita resistência quando o assunto é a crise climática e socioambiental. Na opinião do senhor, porque há essa resistência?

Essa resistência vem desde o tempo de Jesus, não foi à toa que Jesus foi parar na cruz e todos os apóstolos foram martirizados, exceto São João, que morreu de velhice, mas não sem também ter experimentado a perseguição e tortura. 

Sempre que se fala da dignidade humana, cria-se um debate “por que Jesus come com os pecadores?” “por que ele se alia com essa gente desclassificada?” – questionavam-se na época de Jesus. E a Igreja, se quer ser fiel a Jesus, tem que estar a serviço de todos, mas sobretudo dos últimos, porque Jesus tem um amor preferencial pelos pobres e vulneráveis. Ele mostrou isso, basta abrir o Evangelho, não precisamos nem falar da Doutrina Social da Igreja, que já tem mais de 100 anos, desde Leão XIII, todos os papas trouxeram esses temas, que na verdade é uma busca do essencial do Evangelho, é o amor e o cuidado com o próximo, como pede os mandamentos. E Jesus foi além, Ele disse que quem diz que ama a Deus e não ama seu irmão é mentiroso. Por isso, o trabalho de evangelização da Igreja passa, necessariamente, pelo cuidado com os mais frágeis, e entre os frágeis, além do ser humano, está a natureza. 

Deus criou tudo que existe, e viu que era bom. Quando criou o ser humano, viu que era muito bom. Ao oferecer a criação ao Ser Humano, Deus não fez de nós donos, mas cuidadores, é diferente. Só que o Ser Humano passou de cultivar para ser dono, e aí vieram as grandes diferenças, as grandes injustiças, gente acumulando demais em detrimento de outros que não tem nada, gente comendo demais e outros com fome, gente com muita riqueza e outros na miséria. E quando a Igreja toca nesses assuntos, acontece o que aconteceu com Jesus, é mal entendida, caluniada, perseguida. Dom Hélder Câmara dizia “quando dou pão aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque os pobres não tem pão, me chamam de comunista.” 

Então a Igreja, se é fiel a Jesus, sempre será incompreendida quando se trata de cuidar dos mais vulneráveis. Isso sempre aconteceu na Igreja, e não nos amedronta, não nos faz recuar. Se somos incompreendidos e questionados nesse quesito, é sinal que estamos no caminho de Jesus. 

 

As vezes ouvimos alguém dizer que a religião/Igreja devia se preocupar só com as almas e não com o Meio Ambiente. O que o senhor diria a esses irmãos?

Eu perguntaria a esses irmãos: mostra-me uma alma?

 Não existe alma fora de um corpo, fora de uma pessoa. Quando nós falamos de alma, falamos daquela parte mais rica de uma pessoa, o transcendente, a sua ligação com um Ser maior, que nós chamamos de Deus. Não é possível cuidar de uma alma que está vagando, toda alma tem um corpo, e quando nós ressuscitarmos não será só a alma, ressuscitaremos inteiros, corpo e alma. 

Quando a Igreja cuida da pessoa humana, cuida como um todo. Hoje mesmo eu estou visitando a sua paróquia e visitei a Associação Beneficente, o Centro Social da igreja local, que tem um grupo grande de jovens e adultos que cuidam dos mais vulneráveis, e a evangelização tem, necessariamente, esse lado de cuidar do ser humano, dos vulneráveis, de resgate da dignidade humana, porque Jesus fez isso. Quando Jesus juntou uma multidão pra ouvi-Lo e os discípulos pediram para despedi-los, o Cristo disse “dai-lhes vós mesmos de comer”, ou seja, nossa ação evangelizadora, se não é acompanhada de promoção da vida, de resgate da dignidade, ela não é completa. 

A Igreja não está preocupada só com as almas, a Igreja está preocupada com o Ser Humano, como Jesus fez. Quando Jesus ia ao encontro de uma pessoa debilitada, caída, Ele começava por convidá-la a olhar o seu interior “tua fé te salvou”, dizia. Ou seja, pessoa tinha vontade, tomava decisões, esse é o primeiro passo, é o que a Igreja faz, evangeliza, mas ao lado disso, ela também dá dignidade, resgata a dignidade, levanta aquela pessoa, ajuda as pessoas a se organizarem. Jesus nos ensinou isso. Não é possível um seguidor de Jesus dizer que a Igreja só tem que se preocupar com as almas, não é possível. Se se diz seguidor de Jesus, tem que aprender do Mestre, e não apresentar um Jesus que não é Aquele apresentado por João Batista e todos os profetas. É este o Cordeiro de Deus, Jesus, o Salvador da humanidade, que teve uma preocupação com o Ser Humano como um todo. 

 

Alguns jovens dizem sentir falta do incentivo de seus párocos, lamentam que não há abertura nas suas paróquias para se discutir o tema da crise socioambiental. O que o senhor poderia dizer a esses pastores?

Em primeiro lugar, eu gostaria de falar aos jovens. Como diz o Papa Francisco “os jovens não são o futuro da Igreja, são o presente”, então, onde não se lhes dá oportunidade, o jovem tem que conquistar, pedir, exigir esse espaço nas comunidades, porque eles são Igrejas. 

E o que eu diria a esses pastores é que nós estamos atrasados, porque o Papa Francisco lançou em 2015 a Encíclica Laudato Si, que fala do cuidado com nossa casa comum, e acaba de lançar, no último dia 4 de outubro, a Exortação Apostólica Laudate Deum, que fala da crise ambiental. Aquilo que a Laudato Si disse que iria acontecer, está acontecendo, uma crise ambiental sem precedentes, ondas de calor extremo, chuvas excessivas, e o Papa agora diz na Laudate Deum que isso é consequência da ação humana, o ser humano tem culpa no que está acontecendo. Há fenômenos naturais, mas há muitos fenômenos que são resposta da natureza diante das ações. O Papa questionou, no novo documento, que o ser humano está exacerbando seu poder, achando que pode tudo, em outras palavras, brincando de ser Deus, e não podemos fazer isso porque as consequências vêm. 

Os párocos, os padres, os cristãos em geral, que não se preocupam com a casa comum, não estão em sintonia com aquilo que Deus quer, porque Deus criou tudo e pediu que tomássemos conta, se nós não fazemos isso, saímos do projeto de Deus. 

 

Por outro lado, sabemos que já há também um importante trabalho de paróquias e dioceses em promover o cuidado com a Casa Comum. O senhor poderia deixar uma mensagem de incentivo a essas comunidades?

O convite que o Papa Francisco faz é mais que um convite, é magistério da Igreja. A Igreja é Mãe e Mestra. E se nós temos um documento, uma Encíclica, e agora uma Carta Apostólica, dizendo que nós todos temos que cuidar do planeta, da Casa Comum, isso é um ensinamento da Igreja, não podemos questionar, temos que cumprir, porque isso é fruto do Evangelho, da ação de Jesus, dos discípulos, das primeiras comunidades cristãs, e o magistério todo da Igreja nos ensina isso. Talvez, agora, de maneira mais explícita, porque nós estamos vendo a consequência dessa falta de cuidado, enchentes, calor, gases poluentes, efeito estufa, e todo esse palavrório que nós não conhecíamos antes e que agora estão aí.

O Papa tem cobrado também das autoridades, quantas COPs já aconteceram e os países mais ricos não cumpriram a sua parte, e o Papa, na Laudate Deum, está cobrando. Haverá a COP28 no próximo mês e esperamos que se tome medidas realmente impactantes que possam diminuir as consequências nocivas das ações humanas. 

Portanto, minha mensagem é que possamos nos interessar por esse assunto, isso nos diz respeito, é a nossa Terra. Existe uma anedota que diz que dois planetas se encontraram e um perguntou ao outro “como você está?” e o planeta respondeu “eu agora estou com um vírus, o vírus humano” ao que o outro respondeu “não se preocupa que isso passa”. Chegamos no limite, ou nos salvamos todos juntos ou vamos perecer juntos. 

Ninguém tem o direito de dizer “ah, isso não é comigo, não me interessa. Eu vou falar só de Deus, de Jesus”. Quem pensa assim está enganado. Falar de Deus é falar do bem comum, falar de Jesus é falar da dignidade humana, do respeito pela natureza, da nossa casa comum. Eu espero que todos possamos abrir nosso coração e, principalmente, nossa mente, para essa nova realidade. Ainda dá tempo de salvarmos o mundo, a nossa Casa Comum. 


Júlio César de Paula Ribeiro, psicólogo, mestrando em ciências sociais-UERJ, animador Laudato Sí, aluno do curso do Fé no Clima-ISER. 

O saber ancestral como refúgio para pensar justiça climática

Autora: Lorena Froz

Durante a pandemia, pude trabalhar com um grupo de jovens na busca de entender quais eram as memórias ambientais de cada um, relacionadas ao território em que viviam, nesse caso a Maré. O nosso objetivo era verificar o quanto poderíamos resgatar a história e o passado de um local a partir do olhar dos seus moradores.  

No começo eu não entendia ao certo o que poderia surgir a partir desse laboratório de memórias, mas a cada dia eu notava o quanto essa busca passava pelo contato com os mais velhos desses jovens, ao mesmo tempo que ao longo dessa caminhada houve uma autodescoberta de cada um e da sua própria ancestralidade. Foi realmente um dos projetos mais ricos que eu tive a chance de colaborar.

Assim, tivemos um compilado de memórias incríveis de como a Maré, sim a minha Maré que hoje é completamente tomada por cimento, por um descaso do Estado, já foi uma praia. Que suspiro de felicidade pensar que aquele local tinha sua fauna própria, tinha mangues a perder de vista. Em algum momento, por ali corriam rios que minha tia avó se banhava e os pais e avós daqueles jovens também. É reconfortante pensar que a Maré tinha árvores frutíferas e sempre ao final da tarde as pessoas se reuniam em suas portas para compartilhar frutas e falar da vida.

Por meio de outros jovens, que por sua vez ouviram de seus mais velhos, soube sobre o quanto esse território já teve inúmeras rezadeiras, que dedicavam suas vidas a manipular ervas para salvar inúmeras pessoas. Quantas crianças já não foram salvas por essas simples mulheres mais velhas que juntando uma folha aqui e ali conseguiam confortar o coração de mães que viviam à margem de uma sociedade tão desigual que mesmo em situação de saúde comprometida era inviável a compra de um remédio. A partir dessas memórias pude imaginar as minhas.

Concomitante a isso, estive imersa na criação e curadoria de uma exposição com as minhas memórias e das minhas amigas que participaram junto comigo nesta empreitada. E mais uma vez era muito difícil imaginar o que eu poderia criar a partir dessa busca ancestral, por um simples motivo: eu não tinha ideia de onde vinha a minha família, tenho um avô que eu só sei o nome e não porque eu não gostaria de saber mais, apenas porque no dia a dia e na busca pela sobrevivência, gerações e mais gerações não tiveram tempo de olhar para si. Ainda sigo nessa busca de reconstruir a minha árvore.  

A correria do dia a dia e o imediatismo que a sociedade atual nos coloca, com cada vez menos tempo e cada vez mais frases do tipo “trabalhe enquanto eles dormem” acaba por nos sufocar de uma forma que às vezes não conseguimos nem ouvir os nossos próprios pensamentos. Parar e olhar para trás, tentar entender os nossos ancestrais e a tecnologia que praticavam, se torna um ato de coragem em meio a todo esse caos.

E assim cheguei no candomblé sem muitas referências do que seria aquele local, apenas porque a vida foi me encaminhando até que um dia estivesse ali naquele lugar com aquelas pessoas. E pude compreender algo que me fez ver o mundo de outra forma ao entender o quanto o respeito a quem veio antes é algo sagrado e mais do que isso: crucial para o funcionamento da dinâmica do barracão.

Se formos ainda mais a fundo nessa religião, entenderemos que todos os seres humanos têm seu ancestral primeiro, seu orixá, que nada mais é do que a representação de um elemento natural. O quão forte e avassalador é quando nos damos conta disso. O quão significativo é quando entendemos que estamos falando de uma religião que sem folhas não se pode se sustentar, sem os axés que só a natureza pode nos entregar, nada pode ser feito, a natureza é a nossa força vital.

Antes disso, a natureza é nossa ancestral. Parte da minha família. Parte de mim. O sangue que corre nas veias de cada animal, corre nas minhas também. Ela é um ser que vive. Entender isso ainda me causa muitas noites sem dormir, é uma virada de chave da vida. Com o meu orixá eu ainda tenho muito o que aprender também, sobre como utilizar tudo que a nossa biosfera oferece, mas com respeito e cuidado, lembrando que nas florestas existem inúmeras entidades protetoras e que conhecem sobre o funcionamento dessa teia muito melhor que qualquer um.

Entretanto, não posso aqui fechar os olhos para a injustiça climática que corrói meu povo. E é uma injustiça no campo mais amplo que essa discussão permite adentrar. E para começar a elucidar isso, vou para um passado recente. Durante a pandemia da COVID-19 o território da Maré se tornou um epicentro e por motivos que escancaram não a ausência do Estado, mas sim a escolha de políticas públicas que podem acessar esse território. Porque as operações policiais perduraram durante todo o momento em que a minha favela esteve entre os locais onde havia mais pessoas contagiadas por um vírus que pode ser mortal. Entretanto, a falta de água era algo recorrente, a falta de estrutura dos postos de saúde era evidente. Se não tivesse acontecido uma mobilização interna para salvarmos nossas próprias vidas, o cenário teria sido ainda pior. Percebemos então que a única política que pode acessar nossos corpos, de acordo com o governo, é a de morte.

Enquanto isso, a Maré segue sendo uma ilha de calor, um local onde nossas crianças saem para brincar na rua em meio a um lixão a céu aberto. Isso é injustiça climática, é isso que significa viver abaixo do nível do mar e saber que com a crise climática seu território pode simplesmente deixar de existir em algum momento. Injustiça climática é ter que mapear por qual caminho você vai tentar chegar em casa, porque choveu, sua favela está toda alagada e para piorar ainda está sem luz. E inclusive pode estar tendo uma operação policial concomitante.

Sim, à primeira vista, a crise climática pode parecer extremamente democrática, mas eu os convido a ter um olhar um pouco mais profundo. Será que realmente todos estamos reféns dessas consequências da mesma forma? Será que essas consequências não têm CEP, gênero, raça e classe?


Lorena Froz, 22 anos, cria no Complexo da Maré. Técnica em Meio Ambiente, educadora ambiental e articuladora territorial.  Graduanda de Gestão ambiental e Ativista Climática. Idealizadora da Faveleira, um projeto de comunicação e educação ambiental, que busca falar sobre as questões climáticas de uma forma que as pessoas consigam se conectar e relacionar com o seu dia a dia.

Também é integrante do JACA (Jovens em Ação pelo Clima). Participou da construção do material de comunicação da campanha “Climão: Precisamos Falar de Mudanças Climáticas nas Favelas”, da Carta de Direitos Climáticos da Maré, Carta de Saneamento Básico da Maré e da mobilização pedagógica do curso de extensão “Juventude e Mudança Climática” da UFRJ.

Candomblecista, filha do Bàbá Joaquim D’Ògún.