“Nós, de matriz africana, precisamos entender que sem erva e sem água, nós não temos nada.” – Entrevista com o Tat’etu Kavunjesi, do Inzo Unsaba Ionene.

Foto: Projeto Muilo

A ideia desta entrevista nasceu de uma parceria entre mim, Luiz Lopes e meu pai pequeno, Tat’etu Kavunjesi, como trabalho final do curso Boto Fé no Clima, promovido pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), em 2025. Portanto, movido pelas trocas experiências entre os participantes de diferentes tradições religiosas, convidei o Tat’etu Kavunjesi, liderança do Inzo Unsaba Ionene, o primeiro terreiro de candomblé da cidade de Pinheiral, para um diálogo sobre como essa comunidade de matriz africana enfrenta e compreende os desafios impostos pelas transformações do clima.

 


Pedro Paulo Nogueira, mais conhecido como Tat’etu Kavunjesi, é o zelador do primeiro terreiro de candomblé da cidade de Pinheiral, município localizado na região do Vale do Café, no Estado do Rio de Janeiro. Sua trajetória nesta religião começou ainda novo, sendo iniciado em 1973 para o nkisi Kavungo (orixá Obaluaê) e, atualmente, é filho de santo de Mam’etu Mabeji, do também tradicional terreiro Kupapa Unsaba, no bairro de Anchieta, na cidade do Rio de Janeiro. 

Fundado em 1979, o Inzo Unsaba Ionene nasceu com a missão de tocar umbanda. No ano seguinte, em 1980,  após o Tat’etu Kavunjesi concluir suas obrigações de santo, a casa também passou a se dedicar ao candomblé Congo-Angola, assumindo suas responsabilidades religiosas nesta tradição de matriz africana. 

Foto: Luiz Lopes


Confira a entrevista completa:

O que é ser pai de santo para o senhor? Qual o papel desta liderança religiosa dentro da comunidade e para o meio ambiente? 

É muito complicado falar o que é ser pai de santo para mim mesmo. Eu vejo o sacerdote como uma pessoa que acaba sendo um exemplo para muitas situações, para muitas pessoas, aquele porto seguro para outras tantas, aquele que tem que estar sempre sendo amigo, companheiro e mesmo pai (…). E aí eu acho que existe todo um processo coletivo nisso tudo. Eu sou porque nós somos. Se eu não tivesse filhos de santo, eu não seria pai de santo. Então, é todo um conjunto, né? Acabar suprindo a necessidade um do outro. Eu tento manter uma comunidade pensando sobre a natureza.

Nós, de matriz africana, precisamos entender que sem erva e sem água, nós não temos nada. Não temos condições de fazermos nada dentro do candomblé.

Então, eu sempre tento manter esse processo de não sujar o rio, não sujar as matas, cachoeiras, enfim, e automaticamente com o uso das ervas, cuidar das ervas, proteger as ervas, procurar conhecer também, que é fundamental, não é só proteger, mas conhecer também essas ervas, tanto para fins ritualísticos quanto para fins medicinais. 

Qual é a importância das ervas nos rituais? Como é esse vínculo com as plantas? 

Eu sempre fui muito atento às ervas. Então, aquele negócio de você estar dentro do candomblé, “erva tal é de tal Nkisi”. Então, eu sempre tive essa preocupação de aprender que ervas eram essas e, consequentemente, se eu conseguia a muda, eu trazia para a minha casa e trago até hoje (…) Eu tenho uma grande quantidade de ervas aqui, justamente por isso, por conseguir e tentar, e tento, tento, digo tento porque a gente nunca está na cabeça das pessoas, para que eles possam continuar cultivando isso. É um legado que nós temos que manter, as folhas. Então, eu tento que ele preste atenção, que cuide, que não corte, que não destrua aquilo que nós temos. Nós precisamos a todo momento das ervas, isso é fundamental.

 

Foto: Luiz Lopes

O que o senhor tem entendido em relação às mudanças climáticas? O terreiro já enfrentou algum impacto ambiental?

É uma situação em que, hoje, o que percebo é que as mudanças estão acontecendo muito bruscas. Nada está dentro do tempo. No meu tempo de muzenza (iaô), tinha algumas coisas que se falavam “de tal tempo, a gente planta tal erva”, “dá uma atenção a tal erva”, “existe o tempo de poda”, “existe o tempo de colher determinadas ervas, determinadas frutas”. E hoje a gente não vê mais isso. Tudo está acontecendo muito rápido e eu acho que o tempo está mudando muito rápido. Então você não percebe quando é o quê. Então essas mudanças estão acontecendo muito. E automaticamente as ervas estão sofrendo bastante devido às mudanças climáticas mesmo. 

Antigamente você tinha determinadas ervas o ano inteiro. E hoje já não tem. Fica muito frio, ela não aguenta. Ou fica muito calor, ela não aguenta.

Então, tudo isso acaba afetando a casa de candomblé, sabendo que a gente tem sempre ervas suficientes para poder suprir as necessidades da gente. Mas é uma coisa que acaba influenciando, porque você lança a mão daquela erva (…) a gente acaba sofrendo influência por isso também.

Já passei alguns pedacinhos aqui dentro com esse rio (Paraíba do Sul). Tem uma específica, teve uma enchente aqui que eu, dentro da sala de candomblé ali, eu entrei com água no peito. Então, essa daí não tem como negar, você vê tudo aquilo que você sempre lutou para manter, você vê aquilo tudo virar de perna para o ar, porque não tem como você fazer para a água não entrar.

                                          Salão do Inzo Unsaba Ionene.
Foto: Luiz Lopes

 

O senhor entende o terreiro como um espaço importante para a natureza existir?

Com certeza, com certeza. Eu ainda penso o seguinte, se os terreiros terminarem, isso tudo também vai junto. Ninguém tem cuidados com as ervas, (mas) tem cuidado com plantas ornamentais. Eu vejo muito isso. Às vezes você vai à floricultura, é planta ornamental para tudo quanto é lado. Então é isso que eles têm muito cuidado… as ervas elas acabam sendo colocadas como não tem necessidade disso. As pessoas não olham aquilo como necessário. E aí com certeza os terreiros vão ter que manter suas tradições, manter as ervas dentro do terreiro. Então é muito importante para a sociedade. 

Nkisi e natureza são duas coisas que se alinham. E não tem Nkisi sem natureza, nem tem natureza sem Nkisi. Então, a gente tem sempre que agradecer a todos os momentos, a gratidão à Nzambi por nos dar essa maravilha que é a natureza, seja de que forma que ela seja. 

Se a gente não acredita naquilo que professamos, não tem porquê estar aqui.

Então, se professamos o Nkisi, o Orixá, o Vodum, o nome que queira dar, nós temos que professar a natureza, respeitar a natureza a cada momento, respeitar a natureza com aquilo que ela tem para nos oferecer. E para entendermos, nós temos que realmente interagir com a natureza. Para entender uma coisa, você tem que interagir com aquilo. Então, aí você consegue, de uma certa forma, dentro dos terreiros, passar essa necessidade que nós temos de respeitar. Respeitar tudo e a todos, a começar pela natureza. Essa educação, do meu ponto de vista, é só dentro dos terreiros mesmo. Dificilmente fora você vai encontrar isso.

Após esse bate papo, o senhor deseja deixar uma mensagem final para os leitores e seus filhos de santo? 

A minha mensagem é simples, amar a natureza acima de qualquer coisa. Nós dependemos do ar, nós dependemos do fogo, da água, das folhas. 

Então, se nós não respeitarmos isso, nós estamos desrespeitando a nossa própria ancestralidade, nossos próprios Jinkisi. 

Então, amar a natureza é fundamental, desde uma pequena pedra até mesmo uma labareda de fogo que está acontecendo ali. Mas temos que ter esse respeito e, para mantermos esse respeito, a gente começa educando dentro da casa. “Não pode ir assim, não suje ali.” Porque, infelizmente, o ser humano não consegue imaginar que aquilo que ele está fazendo hoje vai repercutir amanhã. 

A natureza sempre devolve com sabedoria, que a natureza tem, àqueles que praticam mal contra ela. 

Então, a gente sempre pede para que haja mais atenção a isso, para que dê mais atenção a isso e olhe a religião de matriz africana não somente como religião, mas como uma cultura do país. O país hoje é o que é, agradeça aos povos de matriz africana que aqui chegaram e fizeram esse país, um grande país.

Foto: Luiz Lopes

 


Luiz Lopes é nascido e criado na periferia de Duque de Caxias, graduando em Ciências Sociais pela UFRJ e atua em comunicação e pesquisa em projetos e ONGs socioambientais do Estado do Rio de Janeiro, em especial na Baixada Fluminense. Trabalha com as temáticas de mudanças climáticas, comunidades tradicionais e mobilização ambiental.